Jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. É autor de 19 livros, incluindo "O Homem que Amava os Cachorros" . Mora em Havana.
Porto-riquenhedade
Porto Rico, como bem sabemos, é um Estado Livre Associado da União Norte-Americana. Como também é sabido, seu status político foi um dos resultados do chamado Tratado de Paris firmado entre o império espanhol agonizante e a nascente potência Estados Unidos da América. Aquele pacto, ao qual se chegou em consequência da chamada Guerra Hispano-Cubana-Norte-Americana do final do século 19, foi arquitetado apenas entre as metrópoles e acabou com a Espanha perdendo seus últimos territórios coloniais na América e Washington ganhando uma colônia (Porto Rico) e uma neocolônia (Cuba).
O que muitos esquecem é que, sem ser Estado soberano, Porto Rico é um país, ou mais ainda uma nação, embora sem nacionalidade jurídica, não obstante conservar alguns atributos nacionais, como a bandeira. A cidadania porto-riquenha não existe e os nascidos na ilha portam passaporte americano -embora não votem com os mesmos direitos do resto dos cidadãos da União.
Porto Rico vem tendo que lutar há mais de um século para não perder uma identidade que é a expressão de sua espiritualidade. Uma identidade que é hispânica, caribenha, porto-riquenha, muito mais que americana. Um estado espiritual, cultural, identitário, singularizador, que foi batizado como porto-riquenhedade: ou seja, a qualidade de porto-riquenho.
Ao longo de seus anos sob a tutela política e econômica norte-americana, a nação porto-riquenha sofreu as mais diversas formas de erosão de sua independência. Hoje metade dos porto-riquenhos vive fora da ilha, a maioria deles nos Estados Unidos, onde também vivem milhões de descendentes de nativos da ilha. A agressão cultural e social, mas sobretudo as complexas condições econômicas do Estado Livre Associado incentivaram esse deslocamento humano, que não tem diminuído, e sim vem aumentando. Isso porque hoje Porto Rico enfrenta sua conjuntura financeira mais difícil: com estrutura econômica desmontada, com corrupção administrativa legendária, com dependência comercial absoluta dos Estados Unidos, a ilha hoje é um Estado financeiramente quebrado, por isso mesmo ainda mais dependente.
Embora nas circunstâncias atuais seja remota a possibilidade de Porto Rico converter-se em um país soberano, como gostariam muitos de seus filhos (mas é justo reconhecer que não todos), no longo processo de dominação colonial ao qual a população de Porto Rico foi submetida eu diria que essa população, ainda hoje em sua maioria (isso, sim, pode se afirmar com maior certeza) e possivelmente com nova força, defende a decisão de conservar, reforçar e defender sua identidade nacional -ou seja, sua porto-riquenhedade.
Algumas das grandes vitórias dessa luta foram a concessão de que Porto Rico tenha um Comitê Olímpico nacional para competir em eventos esportivos internacionais como país independente e que o uso e ensino da língua espanhola tenha derrotado todas as tentativas de substituí-lo pelo inglês. Por essa razão a população de Porto Rico recebeu há duas décadas o prestigioso Prêmio Príncipe Astúrias das Letras pela "decisão exemplar" de suas autoridades de "terem declarado o espanhol o único idioma nacional do país".
Tive recentemente a ocasião de visitar a ilha de Porto Rico mais uma vez. Nessa oportunidade, o que me levou à sua capital, San Juan, foi a realização do 7º Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado pela primeira vez em um território do Caribe hispânico. Além disso, durante o encontro tive a honra imensa de ser nomeado acadêmico correspondente da Academia da Língua de Porto Rico (apesar de não haver categoria semelhante em meu país, Cuba), distinção que eu receberia ao lado de dois grandes escritores sul-americanos, o nicaraguense Sergio Ramírez e o chileno Antonio Skármeta. Esse fato bastaria para explicar minha ligação cultural e espiritual com "minha segunda ilha querida".
Como seria de se esperar, o Congresso se converteu em um ato de reafirmação do caráter nacional e do pertencimento cultural de Porto Rico. Para espanto de alguns, mas não o meu, cada tribuna propícia nos dias que despertaram mais atenção da mídia ao mais importante encontro das academias nacionais da língua foi usada pelos escritores e acadêmicos da ilha para reafirmar incansavelmente algo que para eles é uma luta constante e sempre necessária: a defesa da língua materna, e, com ela, de um elemento essencial da porto-riquenhedade.
Assim, o Congresso foi um exemplo de integridade cultural, de exemplar capacidade de resistência, do empenho para que a Real Academia da Língua Espanhola reconheça em seu dicionário a existência de palavra "porto-riquenhedade" como indicativa da qualidade de porto-riquenho, porque a porto-riquenhedade existe e talvez seja hoje uma das mais belas aulas de defesa da identidade com que conta nosso mundo globalizado e culturalmente invadido.
Tradução de Clara Allain
Livraria da Folha
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