É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.
Lugar de histórias é na Bíblia e em romances, não na chefia de empresas
James Estrin/The New York Times | ||
Exercícios práticos durante aula de 'storytelling' na escola General Assembly, em NY |
Qual é o seu ativo mais valioso?
Se você pensar em termos monetários, a resposta provavelmente será sua casa. Você também poderia dizer sua saúde, sua família, seu tempo —ou seu cérebro. No entanto, de acordo com o novo livro de Carmine Gallo, ex-jornalista, seu ativo mais valioso não é nenhuma das opções acima. É sua história.
Embora eu tenha o maior respeito pela minha própria história, já que eu a exploro muitas vezes em minhas colunas, vê-la como meu ativo mais valioso é idiota. Mostra que a mania do "storytelling" [contar histórias] foi longe demais.
Escrevi pela primeira vez sobre essa moda há mais de uma década. Lembro-me de ridicularizar uma americana que tinha escrito um livro, "Around the Corporate Campfire" (Ao redor da fogueira empresarial, em tradução livre), no qual ela pedia às pessoas que "desenvolvessem histórias instigantes, baseadas em valores, que se espalhassem como um incêndio, e as impulsionassem em direção à sua própria visão".
Ela estava certa sobre o incêndio. Na verdade, a fogueira corporativa se espalhou tão perigosamente que é hora de chamar os bombeiros.
Sei um pouco sobre histórias já que minha profissão é ser contadora de histórias. Ou seja, sou jornalista, e as histórias são o que produzimos. No entanto, agora todo mundo é contador de histórias. Os médicos já não existem apenas para diagnosticar tumores cerebrais. Espera-se que eles contem histórias também. Arquitetos, supostamente, estão fazendo o mesmo. Esse último é particularmente irritante para mim, já que moro em uma casa, projetada por um arquiteto visionário, que tem vazamentos toda vez que chove —fazendo-me implorar por menos foco em histórias e muito mais em projetos de estruturas à prova d'água.
Mesmo matemáticos e cientistas agora são convidados a apresentar seus trabalhos como histórias. Mais absurdo de tudo, a mania se espalhou para os auditores.
O chefe do RH da KPMG recentemente escreveu um blog no qual ele orgulhosamente descrevia a "iniciativa com propósito maior" de sua empresa —o que resultou em 42 mil empregados enviando histórias pessoais sobre como estão mudando o mundo. Você poderia dizer que isso foi comovente, mas, como a KPMG foi a empresa que fez a auditoria na HBOS e na Countrywide Financial and Quindell, é de se preocupar que esteja sendo desviada do propósito mais básico: de fazer seu trabalho com competência.
Contudo, o que mais me aflige é que grandes romancistas estão indo atrás dessa moda. Se alguns escritores ruins estão enganando grandes empresas loucas para contar histórias, tudo bem. Mas, na semana passada, li na "Fast Company" que Mohsin Hamid, autor de "O fundamentalista relutante", tornou-se Diretor de Storytelling da consultoria de imagem Wolff Olins. Isso é triste e inexplicável.
Como o homem que escreveu o brilhantemente engraçado "Como ficar podre de rico na Ásia emergente" pôde aceitar um título tão pomposo e ridículo? Narradores nunca podem ser chefes de nada, muito menos diretores. Eles não têm lugar no comando das empresas.
Existe uma relação inversa entre a frequência com que as empresas falam em "storytelling" e a capacidade delas de usar bem as palavras. Anúncios de emprego agora rotineiramente especificam "excelente habilidade em 'storytelling'", enquanto no LinkedIn uma empresa chamada DialogTech está à procura de um chefe de storytelling que "criará material de marketing criativo e inovador que vai ressoar no público-alvo e o obrigará se envolver com nossa marca através de múltiplos pontos de contato". Bingo: 13 palavras clichês em uma frase.
Histórias no lugar certo são algo excelente. A Bíblia tem algumas muito boas. Todo jornalista sabe que, se tem que escrever um artigo maçante sobre mudanças tributárias, deve incrementá-lo encontrando uma pessoa real para emocionar o leitor mostrando como aquilo vai tornar a vida dele impossível/fantástica.
Todos gostamos de histórias porque gostamos de emoção e porque elas são fáceis de acompanhar para nossos cérebros confusos. Elas animam as coisas. Elas nos animam. Elas podem nos inspirar.
Isso é dizer o óbvio. Não há nada de mágico aí. Não há necessidade de uma moda passageira, ou de um Gallo em "The Storyteller's Secret" (O segredo de um contador de histórias, em tradução livre) para vender a balela neurológica padrão sobre como "contar histórias magistralmente estimula a neuroquímica do cérebro a prestar atenção (cortisol) e a sentir empatia (oxitocina)".
O problema das histórias é que, para ter efeito, elas têm que ser boas —e a maioria das pessoas é péssima em contá-las bem. Outro problema é que, quanto mais interessante você as torna, menos provável que sejam verdadeiras.
No início desta coluna eu disse que todos eram contadores de histórias, o que acaba sendo uma história de pescador. Depois de pesquisar incansavelmente no Google, encontrei duas profissões que ainda não estão inseridas no "storytelling" —encanadores e dentistas.
Isso é meio evidente. Se você precisar de um tratamento de canal, definitivamente não vai querer uma história, mas alguém que consiga dominar uma daquelas pequenas brocas dentárias. O mesmo vale para o encanamento. Encanadores não contam histórias, porque estão muito ocupados desentupindo seu banheiro.
É um sinal muito ruim que o mundo corporativo esteja com tamanha necessidade de contadores de histórias. Isso mostra que pensamos que nosso trabalho não é suficiente sem eles.
Tradução de MARIA PAULA AUTRAN
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