É jornalista e consultor na área de comunicação corporativa.
O Uruguai e a diamba
Ao longo dos mais de 20 anos em que trabalhei no dia a dia do jornalismo da Folha vivi reiteradas vezes a frustração de não conseguir realizar uma reportagem a que me dediquei de tempos em tempos: estipular, da maneira mais técnica possível, qual é o volume do consumo brasileiro de maconha.
Nunca cheguei a números confiáveis, sempre esbarrei na falta de critérios das autoridades, na ausência de estudos acadêmicos sérios, na displicência epidemiológica com relação ao imenso volume da droga que circula no país.
No máximo me deparava, como provavelmente me depararia hoje, com estimativas baseadas (ops!) no volume das apreensões, critério este que muitos policiais federais sérios me afirmavam em off não serem um bom balizamento, já que os confiscos de drogas dependem de tantas variáveis que não basta multiplicar por um fator "x" e, pronto, chega-se ao volume em circulação ou consumo no país.
A minha curiosidade jornalística derivava de uma constatação da vida toda: fuma-se muita maconha no Brasil, desde sempre, em todos os cantos do país.
Por conta de minha atividade profissional, conheço todos os Estados brasileiros, à exceção do Amapá (pretendo ir um dia...). E sempre que chegava pela primeira vez a um Estado, capital ou interior procurava (e ainda procuro, na verdade) me inteirar de indicadores que me permitiam conhecer um pouco melhor onde estava pisando: a história do local, de onde vieram os primeiros habitantes, qual sua formação étnica, quais as faculdades existentes, atividades econômicas, gastronomia, o que se faz ali em termos de música, quem são os autores importantes, quem manda na política local... E sempre acabava perguntando, em algum momento: tem maconha por aqui?
Muita, em qualquer lugar, a qualquer hora, quer um pouco?, infelizmente sim, é um problema, claro que tem --com pequenas variações, estas foram as respostas que sempre recebi ao longo dos anos, com maior ou menor intensidade, em geral variando de acordo com a localização geográfica do lugar visitado.
A incapacidade que tive de estimar corretamente o consumo real e, portanto, se chegar ao "PIB da maconha" no Brasil não me impede, balizado que estou por essas minhas andanças e enquetes, de afirmar que a planta carburante é um dado da cultura brasileira arraigada nos hábitos de expressiva faixa da população, onde há gente mais nova ou mais velha, mais rica ou mais pobre, de cabelos louros e olhos verdes, cara de índio ou antepassado vindo da África.
Quantas pessoas são? Confesso que fracassei, mas sempre há quem ainda queira estimar isso.
Eu acho que é chute, mas vejo que nesta semana o respeitável jornal britânico "The Guardian" publicou uma série de infográficos sobre o consumo global da droga, com dados fornecidos pelo departamento da ONU que estuda o assunto --mas cujas fontes não são reveladas...
São vastas informações sobre tráfico no mundo, volume de apreensões, variação dos preços. E um dos infográficos aponta o uso da maconha por país, em grupos de 100 habitantes. Pois bem, o Brasil aparece ali como tendo nada menos que entre 13 e 16 consumidores a cada grupo de 100 pessoas na faixa dos 15 aos 64 anos.
Não se diz nem como estes dados foram exatamente coletados, nem se o consumo é eventual, recreativo ou por adição, no entanto aponta-se que algo como 15% da população (ou seja, quase todo mundo com capacidade de levar um cigarro qualquer à boca...) faz uso da droga. O que, aliás, coloca o Brasil à frente de quase todos os outros países do continente.
Muito à frente da Colômbia (0 a 3%) ou da Argentina (3% a 5%), mas adivinhe qual país está no mesmo patamar do Brasil, segundo a ONU: sim, o Uruguai, cujo parlamento aprovou esta semana lei que permite o consumo e o plantio doméstico da droga.
A medida foi ao mesmo tempo criticada pelos proibicionistas de sempre, que apontam a violação de tratados internacionais antidrogas, quanto por aqueles que vêm com simpatia o relaxamento da repressão, como acontece em alguns Estados dos EUA, no Canadá, na Holanda ou em Portugal.
Mas o fato é que o Uruguai tornou-se, esta semana, o primeiro país a deixar de lado a hipocrisia de ou combater policialmente o consumidor dentro dos ditames da fracassada "guerra às drogas", ou manter legislação dura com fiscalização branda, fechando os olhos para o consumo.
Com que outro adjetivo pode-se classificar, senão como hipocrisia, o alerta emitido pela Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes, o órgão da ONU que comanda as políticas antidrogas entre seus associados (portanto é um dos executores da "guerra" que já consumiu estimados US$ 20 bilhões, sem êxitos expressivos)?
Para o pessoal da ONU, o Uruguai deveria voltar atrás porque a nova lei poderá causar "graves consequências para a saúde e bem estar da população", como se fosse o caso, então, de se considerar que já há 500 mil indivíduos doentes do país, 15% da sua pequena população.
Claro que não é isso, mas o amedrontamento e o catastrofismo são táticas recorrentes dos que defendem (e se beneficiam) da guerra militarizada contra os consumidores, colocando-se contra propostas que levem em consideração o uso medicinal ou recreativo da erva e o entendimento de que um viciado (quando isso acontece de fato e não por decisão policial) é um doente e não um criminoso.
Por isso se comportam como se com a maconha legalizada toda a população, sobretudo os jovens, massa de manobra também frequente, fosse se entregar loucamente aos baseados, aos malefícios diabólicos da diamba, enterrando o país no caos pagão, com todo mundo logo passando rapidamente para cocaína, heroína, ópio, anfetaminas e tudo o mais que está além dessa perigosa porteira para a perdição...
Na verdade, o Uruguai está no limiar de dar uma lição para o mundo, mas isso não interessa a quem prefere ver o rio de dinheiro do combate militar às drogas seguir seu curso.
O fracasso da experiência uruguaia será, assim, um excelente argumento para quem quer que tudo fique como está.
Não será de se estranhar portanto se nosso pequeno vizinho vier a sofrer todo tipo de boicote ou, pior ainda, de sabotagem.
É esperar para ver.
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