É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.
A hipótese Gaia, revisitada
Os anos 70 foram bem loucos. No meio das pirações filosóficas e teorias paranormais, uma ideia chama a atenção. Tanto por sua bizarrice na época quanto por sua viabilidade, quase meio século depois, por meio da tecnologia. A hipótese Gaia foi uma mistura de misticismos que atribuíam ao planeta uma espécie de "consciência cósmica". Segundo a teoria, os seres vivos interagiriam com as redondezas inorgânicas para formar uma espécie de superorganismo, um sistema complexo responsável pela autorregulação do ambiente, garantindo a vida.
A ideia é poética, mas não tem cabimento. Mamãe Natureza não está preocupada com seus filhinhos, como bem o podem provar os pobres dinossauros. Não há equilíbrio. Depois de cada choque o ambiente se reconfigura de forma diferente, sacrificando espécies no processo.
Ilustração Alpino | ||
Gaia não existe, mas há pouco tempo outra espécie de consciência global vem se formando. Ela não tem nada de natural nem esotérico. Pelo contrário, é construída pelos processos comerciais e industriais e conectada pelas redes digitais.
A presença humana desde a Revolução Industrial provocou mais mudanças no planeta do que boa parte dos acidentes geológicos. O uso da terra através de agricultura e mineração, a destruição de ecossistemas e o comprometimento da biodiversidade, a poluição e o crescimento das metrópoles levaram a uma mudança sem precedentes da superfície e das condições de habitação do planeta. A mudança é tão grande que vários cientistas se referem à época atual como o "Antropoceno", uma época que viria depois do Holoceno, o período geológico em que vivemos desde a última glaciação, há cerca de dez mil anos.
A tecnologia aplicada aos sistemas de transporte, comunicação, logística, mineração, agricultura, industrialização e energia cria uma nova espécie de inteligência global. Suas operações integradas criam um tipo de consciência de rede, coletiva, descentralizada e auto-organizável. Como a hipótese Gaia, ela é autorregulável, resistente a catástrofes naturais ou a qualquer interrupção da rede.
Onisciente, onipotente e onipresente, a tecnosfera cria uma espécie de "superorganismo", que envolve a terra em um processo complexo e descentralizado. É uma inteligência mais parecida com a de uma planta do que com a de um Godzilla. Plantas não têm cérebro, controle central ou órgãos vitais. Sua arquitetura modular permite a reconstrução de boa parte de sua estrutura sem morrer. Não há nada tão resiliente no mundo animal.
Aos 20 anos, essa superplanta ainda é jovem. Ela não tem objetivo a não ser se manter viva. Como qualquer organismo, cresce descontroladamente. Seus desejos não são muito diferentes dos nossos. Água pura e abundância de energia, por exemplo, são vitais para boa parte dos processos industriais.
Como já não é mais possível nem desejável viver sem a rede global, é preciso educá-la, criar nela um sistema imunológico que nos proteja de ações perigosas ou daninhas.
Mas para isso é preciso saber o que queremos. Precisamos reforçar as ideias de comunidade global e os valores de nossas instituições, com a consciência de que o sistema só se sustentará quando beneficiar a todos, sem exceção.
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