É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Em "Cosmópolis", limusine blindada é metáfora da mecânica do mundo financeiro
Fetiche de mauricinhos, "viagra" de ricos vetustos, o automóvel é o mais arcaico e duradouro símbolo do sucesso econômico. Em "Cosmópolis", de David Cronenberg, deixa de ser objeto de desejo para ser o próprio corpo desejante, que desliza na busca agônica do gozo.
O diretor canadense escolheu a metáfora ideal para filmar o modo atual de funcionamento do capitalismo: uma limusine blindada circulando pelo centro financeiro do mundo enquanto tudo se
dissolve à sua volta.
Divulgação | ||
Robert Pattinson em cena do filme de David Cronenberg |
Dentro dela está Eric Packer (vivido pelo ator Robert Pattinson, da série "Crepúsculo"), investidor que, aos 28 anos, já amealhou centenas de milhões de dólares e atravessa Manhattan enquanto seu segurança o alerta para manifestações e atentados.
Durante o percurso, seu bólido recebe visitas de uma "marchande" (com a qual faz sexo), de consultores financeiros, de um médico e de um técnico em informática. Os dois últimos assinalam as duas fobias de Packer: ele faz "check-ups" diários para testar sua saúde física e a vulnerabilidade do sistema de informações que garante sua fortuna.
Em artigo na Folha, Vladimir Safatle mostrou como o cineasta, mestre na arte de explorar os limites do desejo pelas interações entre corpo e tecnologia (filmes como "Crash - Estranhos Prazeres" e "Videodrome - A Síndrome do Vídeo"), muda aqui de diapasão: "Com 'Cosmópolis', Cronenberg lembrou como esses sujeitos assombrados por seu próprio gozo não são o ponto de desajuste da vida social. Eles são o verdadeiro cerne de funcionamento do capitalismo contemporâneo".
Ou seja, no cibercapitalismo, o dinheiro não compra mercadorias: compra mais dinheiro, alimenta-se de si mesmo com compulsão pornográfica. Acrescente-se apenas que esse corpo desejante conserva, na forma de fobias e lacunas inconscientes, o resíduo dos objetos de prazer perdidos.
Enquanto sua fortuna evapora em especulações, Packer atravessa Nova York em busca de uma barbearia. O que parece um capricho (por que se expor ao perigo de bairros degradados por um simples corte de cabelo?) denota também um lapso autodestrutivo, que o leva ao contato com o sofrimento real de pessoas tomadas pela síndrome de irrealidade que ele mesmo provocou. Em seu desfecho enigmático e violento, "Cosmópolis" propõe que o cibercapital, como a economia psíquica, também se move por pulsão de morte.
COSMÓPOLIS***
DIRETOR: David Cronenberg
DISTRIBUIDORA: Swen/Imagem Filmes (locação)
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CONEXÃO
LIVRO
COSMÓPOLIS***
Há poucas discrepâncias entre o filme e o profético romance que serviu de base a Cronenberg. Uma delas é que a moeda que desestabiliza o mundo, aqui, é o iene japonês, e não o yuan chinês do filme.
AUTOR: Don DeLillo
TRADUÇÃO: Paulo Henriques Britto
EDITORA: Companhia das Letras (2003, 200 págs., R$ 24,50)
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DISCO
ESCULTURAS DE VENTO****
Bocato (Selo Sesc, R$ 30 -R$ 24 até o dia 30/1-, CD duplo)
Esse disco surpreendente traz 16 composições orquestrais do trombonista Bocato. Um dos grandes nomes da música instrumental brasileira, ele se distancia aqui das ornamentações virtuosísticas do jazz e de suas variantes. São peças que combinam formas eruditas e matrizes eletrônicas, resultando numa suíte que alterna introspecção grave com momentos
solares, sempre com enorme rigor.
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FILME
O PORTO***
Aki Kaurismäki (Imovision, R$ 39,90)
A cidade de Le Havre (gélido porto do norte da França) é abalada pela chegada de imigrantes clandestinos da África. Um engraxate boêmio e desencantado consegue reunir a comunidade para proteger um jovem refugiado -numa fábula idílica, mas nem por isso menos encantadora, sobre os conflitos étnicos e culturais da Europa contemporânea.
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LIVRO
A MÚSICA DO TEMPO INFINITO****
Tales Ab'Sáber (Cosac Naify, 160 págs., R$ 45)
Essa análise da cena tecno (presente, por exemplo, no filme "Corra, Lola, Corra") vai bem além das "raves" embaladas por alucinações químicas e pulsações sonoras. Psicanalista, o autor mostra como, no fluxo delirante dessa subcultura, há uma conjunção entre hedonismo consumista, ética narcisista e tecnologia que acelera em ritmo maníaco a alienação da sociedade do espetáculo.
Livraria da Folha
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