É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Livro investiga relação da Filarmônica de Berlim com nazismo
Já se disse que a Filarmônica de Berlim é um dos ápices da civilização. Também já se disse que civilização e cultura são vetores opostos --o primeiro representando (notadamente na França) um processo de aprimoramento social e estético, enquanto o segundo corresponderia (sobretudo na Alemanha) a uma identidade coletiva calcada em raízes artísticas e religiosas, avessa à dinâmica histórica e ao racionalismo artificial dos ideais de civilidade.
Não é de estranhar, portanto, que uma orquestra erguida sob o signo do conceito alemão de "Kultur" se deixasse inocular pelo bacilo nacionalista num período de barbárie. Em "A Orquestra do Reich - A Filarmônica de Berlim e o Nacional-Socialismo, 1933-1945", o canadense Misha Aster investiga de modo pioneiro a subserviência da mais perfeita orquestra do mundo à ideologia nazista.
O envolvimento de seus dois maiores regentes no período, Wilhelm Furtwängler e Herbert Von Karajan (este, filiado ao partido hitlerista), já era conhecido. O que mais chama a atenção é a maneira como a cooperativa de músicos (símbolo do esforço comunitário alemão) foi sendo envenenada quando a crise econômica forçou sua estatização.
Divulgação | ||
Herbert Von Karajan, um dos regentes da Filarmônica de Berlim na época do regime nazista |
Aster nota que foram poucos os episódios em que o Terceiro Reich impôs o banimento de uma peça do repertório, por ser de compositor judeu ou de algum modernista degenerado. Não era preciso: mais realistas que o rei, os diretores da orquestra sabiam ler nas entrelinhas as mensagens da burocracia nazista.
Tão escandaloso quanto as turnês de propaganda e os expurgos nazistas é o modo como oportunismo e populismo passaram a pautar as escolhas musicais e a moldar uma razão cínica.
Furtwängler, por exemplo, só defendeu músicos judeus em nome da autonomia e da qualidade artística da instituição, sem protestar contra as perseguições antissemitas: opção "técnica" que lhe garantiu tanto o cargo quanto a absolvição no período de desnazificação.
E se o livro não traz análises estéticas, a paradoxal associação entre alta abstração musical germânica e o vulgar furor nacionalista fica a cargo do excelente posfácio à edição brasileira, de Ibaney Chasin.
LIVRO
A ORQUESTRA DO REICH **
AUTOR: Misha Aster
TRADUÇÃO: Rainer Patriota e Nelson Patriota
EDITORA: Perspectiva (337 págs., R$ 70)
CONEXÕES
FILME
MEPHISTO **
Baseado em romance de Klaus Mann, narra a história real (mas calcada no "Fausto", de Goethe) do ator que vendeu a alma ao nazismo.
DIRETOR: István Szabó
DISTRIBUIDORA: Platina (1981, locação)
LIVROS
O MITO DO MAESTRO **
Livro sobre regentes célebres reserva capítulos especiais ao flerte dos totalitários Furtwängler e Von Karajan com o Terceiro Reich.
AUTOR: Norman Lebrecht
TRADUÇÃO: Maria Luiza X. de A. Borges
EDITORA: Civilização Brasileira (2002, 574 págs., R$ 61)
O PROCESSO CIVILIZADOR - VOL. 1 **
O sociólogo judeu-alemão descreve o processo civilizatório a partir das definições antagônicas de civilização e cultura.
AUTOR: Norbert Elias
TRADUÇÃO: Ruy Jungmann
EDITORA: Zahar (1995, 264 págs., R$ 54,90)
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LIVRO
QUANDO BRINCO COM A MINHA GATA... *
Saul Frampton, tradução de Marina Slade (Difel, 336 págs., R$ 39)
O título completo é caudaloso: "Quando Brinco com a Minha Gata, Como Sei que Ela Não Está Brincando Comigo? - Montaigne e o Estar em Contato com a Vida". O conteúdo, porém, é ameno: um passeio do filósofo inglês pela obra de Michel de Montaigne, criador do gênero ensaio, em que o registro memorialístico desvela as vertigens do conhecimento.
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DISCO
Alexandre Chaves/Divulgação | ||
Os gêmeos Paulo (de pé) e Ricardo Santoro, do Duo Santoro |
BEM BRASILEIRO **
Duo Santoro (A Casa Discos, R$ 25)
Os gêmeos Paulo e Ricardo Santoro formam, há mais de 20 anos, o único duo estável de violoncelos do país. Com participações em várias gravações, lançam agora seu primeiro álbum, com peças originais e arranjos dedicados à inusitada formação. O repertório vai de Villa-Lobos a Villani-Côrtes e é defendido com virtuosismo empolgante.
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FILME
EU, PIERRE RIVIÈRE... *
René Allio (Versátil Home Video, R$ 44,90)
"Eu, Pierre Rivière, que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão" (1976) é baseado no livro homônimo em que Michel Foucault reuniu autos de um crime hediondo de 1835. Sem os textos que analisam os discursos do assassino, de juristas e médicos, a narrativa perde dimensão histórica e filosófica, mas não a beleza aterradora de um surto acompanhado passo a passo.
Divulgação | ||
Cena do filme baseado em livro de Foucault |
Livraria da Folha
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