É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.
Soluções contra a crise
Apesar das estatísticas, minha lembrança da crise econômica de 1981-83 é de algo mais grave e forte do que a recessão de agora.
Parado num semáforo da avenida Brasil, o que eu via era uma procissão de pedintes, vendedores de balas e paninhos, mães com crianças de colo. Um menino maiorzinho pendurou-se chorando no meu carro (tempo em que eu andava de janelas abertas), impedindo-me de prosseguir.
Havia quinze ou vinte pessoas em cada cruzamento. Pior que isso, eu pensava, só no Cairo ou em Mumbai; de qualquer modo, tudo tinha um ar de Idade Média, de comboio de penitentes ou leprosos.
Não quero minimizar a pobreza de sempre, nem a crise de hoje; a olho nu, entretanto, os sintomas que percebo não são os mesmos.
Todo dia reparo em alguma loja fechada; um ou outro quarteirão se torna quase inteiramente cinzento, com o ferro de portas em sanfona cobertas de pichações.
A maior surpresa vem de ver que alguns negócios resistem, embora tudo parecesse conduzi-los à falência.
A desenxabida butique de bairro, com seu único vestido de festa por dias balançando franjas pretas ao longo de um meio manequim que é pura viuvez; os bolos brancos e grudentos, de que sobra um terço, desmoronando na vitrina daquela doceira que há quarenta anos não muda seu cartaz; a "casa de decorações" sempre às moscas, com seus presentes de prata ou de cortiça à espera de um casamento que não houve.
"Vende-se", "aluga-se", "passa-se o ponto". Chega o inverno, vou a uma lavanderia mandar limpar o edredom, e lavanderia já não há.
Este estacionamento, espere um pouco, é novo na rua. Por que tão iluminado, e tão revestido de ladrilhos brancos? As Casas Bahia ficavam aqui, explica o manobrista.
Vou ficando melancólico demais, e meu objetivo era outro ao começar este artigo. O que mais me espanta é a criatividade para o inútil, a imaginação que sempre aparece quando se trata de abrir novos negócios.
Não sei se prosperam; fico em dúvida se torço a favor ou contra. Mas coleciono as iniciativas de que me mandam notícia por e-mail.
Seguro de saúde para cães e gatos, por exemplo. Sim, diz o release, os pets são parte da família. E, caso você não saiba, a longevidade dos animaizinhos aumenta na mesma proporção da de seus donos.
Acautele-se contra um imprevisto, e ganhe grátis uma limpeza de tártaro completa nos dentes do seu cachorro. Logo inventarão "casas de repouso" para cães e gatos decrépitos, que não tenhamos mais paciência de manter em casa.
Esqueçamos o cachorro. Passemos à cozinha. Você certamente não está sentindo falta de panos de prato –até porque já comprou uma meia dúzia do vendedor no farol da esquina.
Enganou-se. Uma nova empresa avisa: seu pano de prato é cafona. Patinhos, casas de campo, violetas, joaninhas, pimentões: tudo é "out". Panos de prato com a imagem de um rótulo de bourbon ou de Johnny Walker certamente haverão de combinar mais com seu estilo de vida, assegura a loja "outlet mais".
Nada como inventar novas necessidades. Advertem-me: devo acompanhar as "novas tendências para barba e cabelo" no inverno de 2016. É o anúncio de uma barbearia, ramo de negócios em que a demanda por serviços tende a se manter constante, como sabemos, dentro da crise ou fora dela.
Que inocência de minha parte. Haverá de fazer diferença, sem dúvida, um corte de cabelo qualquer e outro, antenado na moda inverno de 2016.
Os cuidados com a aparência se diversificam. Se já se tornaram rotineiros os "centros de depilação", a novidade vem nas casas especializadas em design de sobrancelhas –para nada falar das esmalterias, que tornaram os serviços de manicure coisa contemporânea das polainas e dos tílburis.
Falta pensar em esmalterias para cachorros, colocar gente vendendo planos de saúde nos faróis de trânsito, e criar seguradoras para empresários presos pela Polícia Federal; no capitalismo, sempre se pode inventar um jeito de sair ganhando.
P.S. - No artigo da semana passada, confundi-me no alemão. A palavra para "atrações turísticas" é "Sehenswürdigkeiten" (coisas dignas de se ver), e não "Merkswürdigkeiten" (coisas que chamam a atenção), como escrevi.
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