É repórter especial da Folha,
autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
Escreve aos domingos
e às segundas.
O verão já vai tarde
O verão acabou. Não graças a Deus, mas à inclinação do eixo de rotação da Terra em relação ao Sol. Com ela, o hemisfério Sul passa metade do ano mais exposto à radiação solar que o do Norte, e vice-versa.
Já vai tarde, porém. Foi o verão mais quente nos registros da cidade de São Paulo, iniciados há 71 anos. A temperatura média bateu em 31,3°C, um grau acima do recorde anterior (1997/98).
A pouca chuva que caiu veio em temporais, que inundam tudo e não refrescam nada. Os reservatórios secaram, expondo a imprudência dos governantes. Boa parte da população do país está à beira do racionamento de água e de luz.
Seria a estiagem escaldante prova de que o aquecimento global causado pelo homem está em curso?
Não necessariamente, assim como as nevascas violentas no Sul dos EUA não provam o contrário (que a mudança do clima seja uma farsa, como dizem os céticos). O Alasca teve o janeiro mais quente em 29 anos.
Esses fenômenos podem bem estar relacionados com o calor anormal no Ártico. A calota de gelo sobre o oceano polar tem batido recordes de encolhimento.
Nada disso contradiz as previsões dos cientistas que alertam para o aquecimento global. Ao contrário.
Considere agora outras coisas estranhas e recentes: secas graves no Nordeste, na Califórnia e na Austrália; enchentes e ressacas no Reino Unido; inundações na região amazônica da Bolívia e do Brasil.
Claro está que tudo isso pode ainda ser atribuído a variações naturais e locais do sistema climático. É da natureza da meteorologia as condições mudarem o tempo todo.
Na percepção do público, porém, de alguma maneira a repercussão desses eventos parece abalar a tendência humana a rejeitar previsões desagradáveis, sobretudo quando elas são difíceis de entender, descrevem processos lentos de deterioração e exigem ação imediata –vale dizer, investimento– para colher efeitos longínquos.
Foi talvez por entrever essa oportunidade que a Associação Americana para o Avanço da Ciência lançou o documento "O que Sabemos" (whatweknow.aaas.org).
Fruto de um comitê liderado por Mario Molina, Nobel de Química em 1995, o texto usa linguagem direta para convencer americanos de que o aquecimento global é fato.
"As evidências são preponderantes", afirma. "Os níveis de gases do efeito estufa na atmosfera estão aumentando. As temperaturas estão subindo. As primaveras estão chegando mais cedo. Calotas de gelo estão derretendo. O nível do mar está subindo. Os padrões de chuva e seca estão mudando. Ondas de calor estão ficando piores, assim como os extremos de precipitação."
O texto não perde tempo, entretanto, com alimentar a controvérsia estéril com os céticos. Seu interlocutor é o cidadão comum, para o qual destina analogias como a do beisebol (o uso de esteroides muda o jogo como um todo, embora seja difícil provar que este ou aquele jogador pontuou mais por causa deles).
A melhor analogia é com a racionalidade dos seguros. Mesmo que o risco de um desastre seja pequeno, mas com consequências catastróficas, faz sentido proteger-se pagando hoje uma fração do que custaria o dano para garantir a capacidade de remediá-lo, caso ocorra.
O verão de 2014 já vai tarde. Que o outono traga o fim das noites febris e das apostas irresponsáveis.
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