Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.
'Andava com casacões até o pé' contra olhares na rua, diz Leticia Sabatella
Leticia Sabatella diz que teve sua "pós-graduação" como atriz não em uma escola de teatro, mas durante seu contato com os índios Krahô, no Tocantins, iniciado em 2001.
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Em 2012, ela lançaria o documentário que resultou da experiência. O filme leva como título o nome do "Hotxuá", espécie de "palhaço sagrado" da aldeia, que ela compara à figura do ator: "É uma realidade universal. A função do ator, da arte, de aceitação das diferenças, de integração da comunidade, de fortalecer a autoestima das pessoas", diz.
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"E também de quebrar autoritarismos, autarquias, ditaduras", continua. "Se você tem a figura do irônico, do palhaço, do que diz, alerta, conscientiza, você consegue ter uma sociedade mais saudável.
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"Sempre precisei ir para algum lugar onde meu pé ficasse no chão novamente. Ainda mais depois de experimentar a fama", afirma. Ela conta que ficou incomodada quando, ao visitar os Krahô, foi seguida por moradores da cidade vizinha e os índios perguntaram: "Por que todo mundo quer vir na aldeia? Nunca quiseram vir aqui antes". "Isso me doeu", diz ela ao repórter João Carneiro, depois de uma sessão da peça "A Vida em Vermelho", em que interpreta Édith Piaf, cantando músicas dela.
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Ela tira a peruca durante a entrevista, mas faz questão de encaminhar ao repórter as fotos de divulgação do espetáculo ("Não gostaria que pensem que faço a Piaf assim"). A obra, escrita por Aimar Labaki, é um encontro fictício entre a cantora francesa e o dramaturgo Bertolt Brecht, vivido pelo marido de Leticia, o também ator Fernando Alves Pinto.
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"A Piaf e o Brecht traduzem em música o que gritam os oprimidos. E ela é uma pessoa que traz uma dignidade a um 'bas-fond' parisiense e universal: prostitutas, bêbados, drogados, Cracolândia, o que seja. [Ela diz:] 'Olhe pra mim com seu coração'. Isso é que eu acho forte nela."
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Além de Piaf, Leticia interpreta agora a vilã Delfina na novela "Tempo de Amar", na Globo. A governanta tem uma filha com o patrão, que ele não assume -o que a leva a sabotar a outra filha dele.
A personagem ganha tons políticos na descrição da atriz: "É uma mulher ferida pelo patriarcado, pelo machismo, pelo poder. Por ser pobre, por ser mulher. E ela vai adoecendo, é um ser humano. Vai adoecendo de inveja, uma inveja patológica", diz. "Você constrói essa ausência de empatia quando você oprime, oprime, oprime, oprime."
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Ela própria diz que já foi alvo da violência machista. "Quando era adolescente, eu andava com casacões do meu avô até o pé, na rua, de noite. Não era uma coisa consciente, mas hoje eu sei por que eu fazia aquilo. Eu não gostava que as pessoas ficassem olhando o tempo inteiro, objetificando meu corpo, sabe? Você vai introduzindo como naturais certos comportamentos. De resguardo, de recato, de contenção de opinião."
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"Teve um momento da minha vida em que minha voz era guardada", conta. "Aos 46 anos, eu já não não permito que façam isso comigo, que me intimidem."
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Em julho de 2016, a atriz foi chamada de "puta" por um dos manifestantes que a cercaram depois que ela passou ao lado de um protesto pró-impeachment em Curitiba. A família da atriz, incluindo a filha, Clara, mora na cidade.
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Nas filmagens do episódio que passaram a circular na internet, ela aparece cercada de pessoas que entoam gritos como "A nossa bandeira jamais será vermelha". Ela diz: "Vocês não são democráticos!".
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"Eu confesso o que eu senti daquelas pessoas [foi] pena. Porque eu vi, assim, nossa... que abismo. Que falta de empatia, de conexão com o que é verdade, inclusive. Eles estão acreditando numa lavagem cerebral".
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"As tempestades vêm e passam", continua. "Quando você vê que a vida é assim, de cavas e de cristas, de ondas, você não teme a adversidade. Claro que você se machuca, se fere, sofre. [Mas] você não teme a adversidade. É por isso que aquelas pessoas gritando... Eu não temia aquilo."
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"[A situação] não me faz sentir raiva daquelas pessoas. Me faz me defender na hora, humanamente, né? Eu enfrentei, eu olhava no olho de quem tava me xingando, mesmo. Como assim, sabe?", conta.
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"O senhor não me conhece, eu sou apenas uma sombra da rua. Mas venha, sinta-se em casa, ponha suas dores sobre o meu coração", prossegue a atriz, recitando uma adaptação da letra de "Milord", de Piaf. "Eu não sou um objeto pra você usar, pra você explorar, pra me xingar. Me veja, eu sou um ser humano, como você. Isso é o que ela [Piaf] diz na obra dela".
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Passado o turbilhão político de 2016, a atriz avalia que a situação atual ainda é "revoltante". "A gente tá vivendo um momento em que tem assassinos armados dentro de nossa casa ameaçando nossos filhos, numa metáfora bem pesada."
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Ela afirma que temos alguns "políticos bons", mas ainda não sabe em quem votará nas eleições do ano que vem. Diz que a ascensão de Jair Bolsonaro é "bem temível". Sobre a candidatura de Luciano Huck, agora descartada, conta que não tem "uma coisa absolutamente contra", mas fica "um pouco preocupada: a que ponto nós chegamos, né?"
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A entrevista já se encaminha para o fim quando o marido de Leticia, Fernando, a chama para almoçar antes da próxima sessão do espetáculo, que ocorreria ainda naquele dia. Seria a penúltima da temporada em São Paulo -ela negocia convites para retomar a peça no ano que vem, ainda sem local definido.
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Leticia tinha 14 anos quando começou a fazer teatro em um grupo amador em Curitiba. Ela passou a pensar em ser atriz quando leu sobre o ofício em um livro de orientação vocacional mostrado a ela por uma amiga. "Ah, a gente pode ser ator de profissão?", surpreendeu-se.
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Hoje, diz, acredita exercer a profissão "com responsabilidade". "Já dizia o Homem-Aranha: 'Grandes poderes exigem grandes responsabilidades'", cita, rindo. "O Ariano Suassuna fala, em um depoimento no documentário ["Hotxuá"], que 'os pesquisadores das sombras são muito importantes para a saúde de uma sociedade'. A sociedade tem o apolíneo, mas tem que ter o dionisíaco. A gente tem que ter um Zé Celso [dramaturgo do Teatro Oficina]."
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"[O teatro] é uma medicina. As pessoas transcendem através da sua arte, elas vão se enxergar de outra maneira quando te verem. Não é só você que elas estão vendo. Elas estão se vendo. É isso que é mais importante. E, ao mesmo tempo, é uma profissão como outra qualquer", conclui.
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