É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
Escreve às quartas-feiras.
A mais pura verdade
Há tempos venho estranhando que a TV mais moderna está tomando um formato dos primórdios dos anos 1950. Só que no formato de reality show. É possível tanto reality show? O que foi que aconteceu? Deu a louca na TV? Alguém arruma sua casa, te ensina como se vestir, como cozinhar, como se pentear, e o ubíquo CONCURSO.
Tudo pode mudar! A casa se transforma em outra, ou modificam só o seu quarto, a cozinha, o armário da copa, o banheiro, a escada! Reparem nas expressões dos donos das casas transformadas! NENHUM FICA FELIZ. Era a casa dele, com as coisinhas horrendas dele, ele que havia arrumado, agora é um set de TV!
E as mulheres, então! Todas são tidas como feias antes de passar pelo grande transformador, que é o plástico, o cabeleireiro, o estilista, o maquiador! Uma bela sardenta de calça jeans, sem maquiagem se transforma na Beyoncé para espanto do marido caipira.
E seremos nós, o público, que pedimos esses programas? Não. São mais baratos, muito mais baratos, é o que me dizem. E há mais facilidade de patrocinadores.
E no caso dos realities de comida, não temos nem assassinatos, nem traições, ninguém pelado, e não temos vergonha ou culpa de assistir. Viva a comida, o seu preparo é mais neutro, menos pecador. E aquelas frescuras que cometem nos pratos não é luxo, é entretenimento, superficialidade. Se a hortelã não estiver por cima da lagosta, fora chef, ponha seu avental e suma daqui, você não sabe qual a última moda da lagosta!
Com o tempo a mídia transforma as nossas percepções de quem somos, do que precisamos, qual nosso lugar numa sociedade, mas faz isso devagarzinho, de acordo com o nosso passado. Não é um programa de comida de reality que vai nos enfiar na cabeça que devemos servir tudo numa colherinha, e não num prato.
Mas, fazemos parte de uma cultura e uma sociedade coletiva, e se nos considerarmos imunes e não prestarmos muita atenção em pouco tempo estaremos nos sentindo piores por não colocarmos a sobremesa em "verrines" horizontais, seja lá o que isso signifique. Os programas de reality são inventados, o que não importaria em matéria de entretenimento, quando suspendemos nossa crítica.
Mas cronistas, blogueiros, cozinheiros, na hora de nos comunicarmos parece que tudo aquilo é real, tal chef é mau, o outro é injusto, a menina não sabe cozinhar. Como gente que assiste TV, que acho quase obrigatório, temos que estar bem conscientes, pois as reações dos participantes é real, e andamos carentes de realidade. É bom ver a surpresa, a alegria, o susto na cara alheia.
Temos tendência a acreditar, como no cinema, quando nos envolvemos na trama. Mas, é bom que a gente se lembre, tudo a que assistimos atualmente, box, judô, competições, namoros, viagens, reformas de casas, colecionadores de bonecas, carros vintage, as pegadinhas, quem come mais hambúrgueres, o melhor pão de alho, os jurados que gritam, os participantes que choram, sinto dizer, é tudo falso, manipulado e editado. É como uma novela, nada contra, o que é proibido é acreditar neles como se fossem a mais pura verdade!
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