É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
Escreve às quartas-feiras.
O Nobel de Literatura e as lições de Chernobyl para os cozinheiros
Fiquei feliz pela vencedora do Nobel ser uma "new journalist", uma repórter, enfim, que escreve muito bem. Uma repórter literária. E por que não? O que divide a literatura em compartimentos? Sua obra trata de grandes acontecimentos históricos. Gostaria de reler, não com tanta pressa para essa coluna, mas com mais reflexão.
Nunca a havia lido. Consegui um e-book em espanhol, na Amazon. "Vozes de Chernobyl". A catástrofe. O grande estouro de Chernobyl, a explosão de uma fábrica nuclear em 26 de abril de 1986, e o que aconteceu a milhões de pessoas e aos bombeiros que os acudiram. Ela própria, Svetlana Alexievich, testemunhou. Mas o quê? É tão fácil deslizar para a banalidade do horror.
Logo me espanto e me afeiçoo ao livro. É um conjunto de entrevistas que ela demorou 20 anos escrevendo. São pessoas de todos os níveis que ela deixa que falem o que quiserem. Passo por cima das mortes horríveis, dos sofrimentos das perdas, dos efeitos e sequelas do envenenamento, das contaminações, e pesco algumas falas do cotidiano.
Ela olha Chernobyl como o início de uma nova história. Põe em dúvida a concepção de si mesma e do mundo. Dedica, ao que chama história omitida, as leves ondas de nossa passagem pela terra. Recolhe o cotidiano dos sentimentos, pensamentos e palavras. Ela, bielorrussa, e todas as vítimas de Chernobyl deram um salto na história para uma nova realidade. Calaram-se todos, ninguém encontrava palavras para transmitir aquela vivência. Era um horror que só se via na morte próxima de uma parente ou amigo ou nas filas dos cemitérios.
O que não era a morte se mostrava igual, talvez coberto por uma poeira fina. Pois quase tudo se mostrava igual a sempre. Só que não se podia arrancar flores, beber da água, sentar-se na grama. A radiação não se via, não se escutava. Os pescadores se intrigavam, pois as minhocas haviam descido mais de um metro abaixo do chão, as abelhas sumiram, onde comprar, onde ir, como aprender a viver de novo? Tudo é diferente, o médico já não dá à mulher pêsames pelo marido, mas recomenda que fique longe dele. Não o beije.
E as paisagens sem o homem? Os objetos sem o homem? A Svetlana, aquilo lhe parecia o futuro. Os velhos não entendem, sempre viveram de suas batatas, de suas cenouras, de seus pepinos. Vão ter que enterrar tudo, até as cinzas do forno? Lavar a lenha? E nossos gatos e cachorros que nos seguem quando vamos embora e são mortos a tiros?
E se formos para outro lugar, o que fazer com as batatas que já plantamos? Deixar tudo para trás? Nós não mais fazemos falta em lugar algum, até os pássaros preferem seus ninhos, nós nem ninhos temos mais. As cristas das galinhas não são mais vermelhas, e, sim, negras. Coisas da radiação. O médico pede que entreguem as vacas. Não, como vamos viver sem elas? São nosso sustento.
Nossa vida gira em torno a Chernobyl. O que foi que você viu? Onde estava? A que distância do reator? Quem morreu? Quem se foi embora daqui? Para onde?
Que mudança é essa? Tudo proibido, o leite, os legumes, as amoras, a carne que nos mandaram tem que ficar de molho por três horas, e há que se trocar a água da batata três vezes enquanto cozinha.
Como não se pode beber de nossa água? Todo mundo precisa de água, até as pedras têm água. É que não entendemos nossas leituras. No apocalipse de São João, caiu do céu uma estrela que ardia sobre os rios, sobre as plantas, e os homens morreram, pois as águas se tornaram amargas. Eram as palavras que nos mandavam sinais, e não acreditamos neles.
Na fuga, mulheres com cestos de coisas que haviam plantado, batatas, abóboras, ervas. Pepinos. Fui eu que plantei, são meus, são saudáveis. Os veados, os javalis bebem da água clara, ninguém lhes disse nada e se dissessem também não entenderiam. Temos que enterrar a própria terra e os bichos que a terra tem, só não conseguimos matar as tartarugas, passamos com o jipe por cima e o casco as protege.
O pó que sai da Central não é amarelo, nem negro, é azul.
E um homem filma os caminhos rurais. Cheios de pó. Mas pó radioativo. Era um maio muito seco, os jardins cheios de flores, mas ele não entendia alguma coisa. Estava igual, mas diferente. É isso, nada tem cheiro. Tudo sem cheiro, esse outro mundo da natureza sem cheiro.
É um homem que sofre, mas que quer voltar ao seu cotidiano, nada mais o interessa do que sua família e sua plantação. São os mais fortes sentimentos humanos, e é sobre eles que Svetlana quer que falem, que contem a ela.
O livro é formado pelos testemunhos trágicos de quem sofreu e sofre em Chernobyl. Bem escrito. Eu acho que se fosse menor, mais condensado, sem muitas repetições, alcançaria mais ainda à nossa consciência. Dentro da tragédia de Chernobyl (nível 7, o máximo na escala internacional de acidentes nucleares) podemos tirar muitas conclusões.
Chernobyl ainda é uma universidade aberta para uma pesquisa do futuro, inclusive para nós cozinheiros, que tememos sempre a contaminação dos alimentos e sabemos dos perigos que podemos evitar se nos concentrarmos, com foco, nesse aspecto da vida.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade