É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
Escreve às quartas-feiras.
O chef quer é agradar com o melhor que dão a terra, o mar e o sol
Pawel Kopczynski/Reuters | ||
Caros leitores, já contei muitas vezes a história do meu dedo nervoso que basta ver um e-book com lindas fotos e clique, lá vai ele. Não é inteligente, é compulsivo. Cada um desses livros vai nos trazer no máximo uma receita ou duas sugestões. Às vezes é o contrário, o livro é bom demais, grande demais e apesar de estar gostando dele outro aparece na frente, e ele é deixado na prateleira esperando dias ociosos que não chegam nunca.
Nós não somos o Bocuse nem o Atala, deixa pra lá, nada de ficar macaqueando demais a comida alheia, a família nem aprova. É por isso que quando aqui falo ou resenho um livro, não estou obrigatoriamente indicando para compra. Só contando do que se trata, as novas ideias.
Há um desses livros me espiando da prateleira há tempos. Desses bonitões, grandes, bem editados, glossy, lindas fotos. Chama-se Manresa, o nome do restaurante de David Kinch, da Califórnia. Um dos pioneiros do "locavore", estudioso, obsessivo, perfeccionista. Queria que ao olharem um prato feito por ele adivinhassem quem era o autor.
O livro conta essa caminhada com detalhes. Quem sugeriu que ele comprasse e não alugasse um restaurante para fazer sua carreira foi Thomas Keller. "Crie raízes, pois é mais difícil largar sua própria casa, não vai deixar o lugar à toa, e se quiser pode vender um dia."
David Kinch acatou a ideia e achou um lugar em Carmel, Califórnia. Já se conhecia como do tipo de chef orgânico, biodinâmico e sustentável. Igual a muitos. Foi quando aconteceu a epifania do tomate. Uma cliente, vizinha, foi comemorar o aniversário lá e ele soube que ela plantava tomates. Não vendia para restaurantes, achava complicado, mas a boa comida dele a comoveu e pouco tempo depois chegou ao restaurante com uma cesta de tomates diferentes e em vários estágios de maturação. O chef pôs o olho num deles, viu que era delicado, segurou-o como se fosse um balão de gás, tinha que ser comido com cuidado, talvez um pouco de sal, mas o azeite poderia pesar. Em uma semana já eram sócios e ela começou a plantar de tudo.
Antes, no Maresa, os menus eram pensados no papel, seguidos de telefonemas aos fornecedores. Logo descobriram que um cozinheiro pensa melhor com uma berinjela na mão. Hoje quem manda é a horta e os menus são como as coleções de moda, no frio já se pensa o que se vai comer no verão. O laboratório é ao ar livre e as experiências lidam com a raiz, o caule, a folha, a flor, os vários estágios de maturação. Fazem picles com sementes e cristalizam pétalas de flores. Da horta à mesa, o que foi plantado lá não pode nem entrar num caminhão, tem que ter gosto de sol.
A história é bonita e grande, a tal história de colocar a paisagem no prato. Às vezes isso me soa como uma metáfora, mas esses cozinheiros levam a ideia muito a sério, os pratos são mesmo nacos da plantação, até a terra eles aproveitam, queimando batatas e usando as cinzas.
O nosso chef que já era daqueles obsessivos, quando viu a trabalheira insana da agricultura (e olhem que a vida na cozinha não é nada fácil!), começou a respeitar a terra, quase a venerá-la e a aproveitar cada minuto daquele afazer, usando as plantas desde as raízes às flores.
Mas, nem dá para contar o prazer verdejante deles e a continuação com vacas e porcos e cordeiros e peixes com o mar barulhento ali perto cheirando a maresia.
Mas, o capítulo final, "A independência do chef", pode nos servir.
Ele só se sentiu independente uns cinco anos depois de muito trabalho, viagens e leituras.
Descobriu que há três níveis na vida de um cozinheiro. No primeiro, você imita. Olha os livros, copia, trabalha para os outros.
Depois assimila. Começa a pegar a ideia alheia, mas vai sozinho, só que na base ainda se vê a comida de seus ídolos e professores. Conversa com outros cozinheiros, tira férias num lugar diferente, vai aos mercados, aprende a mergulhar. Começa a ficar confuso com cinco jeitos de fazer um arroz. Mas, de repente brota na sua cabeça um sexto jeito, o seu, que é uma combinação dos cinco que aprendeu, melhorada, com sua cara.
Bem depois vem a inovação. Demora. Não quer dizer que vai reinventar a comida brasileira. Não, mas seremos capazes de dizer que aquele prato foi feito por você.
Quando já era um chef único e bem formado apareceu a técnica. Virou moda. Havia uma máquina para cada coisa. O liquidificador e o processador tinham ajudado muito. Mas, de repente, foi aquele chuá. Pacojet, fogões computadorizados, nitrogênio líquido, as mudanças radicais. Nosso chef se acovardou um pouco. Bem ele, o curioso, ficaria para trás? Aprendeu a lidar com tudo. Era Ferran Adrià procurando texturas diferentes, Andoni Aduriz engrossando o caldo com pele de bacalhau. Quem quer saber de cozinha francesa? Já era.
Nosso chef não entrou na briga, resolveu esperar para ver no que dava. Mas, verdade das verdades, não gostava muito das novidades. Achava que as carnes tinham o mesmo gosto cozidas no sous vide. O Pacojet? Resistiu. Agora um por cento do seus sorvetes são feitos com ele, mas sente falta do gosto dos ovos que no Pacojet talham. Mas nada como o Pacojet para sorbets, e o óleo aromatizado com ervas, pois não há necessidade de aquecer. E o purê de couve-flor, um estouro!
Os fogões e fornos achou maravilhosos, quase que cozinham sozinhos. No restaurante brincam com xantana. De vez em quando ajuda. E os franceses? Morreram? Só sobraram bascos, catalães? Não. Aproveitaram tudo de bom que a técnica podia lhes dar e que não atrapalhasse o gosto da comida. Na verdade, temos é que escolher o que nos serve naquele pequeno pedaço de mundo onde trabalhamos e vivemos e o que o chef quer é agradar o cliente com o melhor que a terra, o mar, a sol lhe pode dar.
Vou colocar uma ou outra receita dele, não valem a pena, nem ele acha que devem ser seguidas à risca, ingredientes difíceis, esforço muito grande. Mas é tudo tão bonito que vou roubar algumas fotos e publicar no Facebook.
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