Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.
'Estupra, mas não mata'
"Como vai? / Tudo bem / Apesar, contudo, todavia, mas, porém / As águas vão rolar..." Lembra? São versos de "Saúde", bela composição de Rita Lee e Roberto de Carvalho. Tirante "apesar", que integra as locuções "apesar de" e "apesar de que", de valor concessivo, as palavras arroladas no terceiro dos versos citados ("contudo", "todavia", "mas" e "porém") são conectivos de valor adversativo.
Como se sabe, as palavras "adversativo" e "adversário" vêm do mesmo ventre. Um conectivo adversativo estabelece relação de oposição com o que foi dito na oração anterior. Grosso modo, é como se se dissesse algo como "isso sim, aquilo não" ou "isso não, aquilo sim".
De fato, é comum que numa das orações ligadas por um conectivo adversativo haja um "não" ou palavra/expressão de valor negativo ou ainda a ideia de exclusão, restrição etc. ("Corri muito, mas não alcancei o ônibus"; "O time fez ótima campanha, mas foi eliminado"; "Não estudou, mas foi aprovado"; "Estudou muito, mas foi reprovado").
Agora veja este par de períodos: "O time jogou mal, mas venceu"; "O time venceu, mas jogou mal". As palavras que os integram são exatamente as mesmas, mas ninguém pode dizer que ambos são equivalentes, têm rigorosamente o mesmo sentido etc.
Quando se opta pela primeira construção ("O time jogou mal, mas venceu"), dá-se mais importância à vitória; quando se opta pela segunda ("O time venceu, mas jogou mal"), enfatiza-se o baixo nível da apresentação, ou seja, reconhece-se que a vitória não esconde a má apresentação.
Certa vez, perguntaram a Tom Jobim que relação ele estabelecia entre Nova York e o Rio de Janeiro (o Maestro chegou a ter uma casa em cada uma das duas cidades). Genial como sempre, Tom disse o seguinte: "Nova York é legal, mas é uma merda; o Rio é uma merda, mas é legal".
Depois dessa bela aula de língua (mais uma) do grande Tom, torna-se impossível não entender o que eu me descabelei para explicar no parágrafo anterior.
Pois bem. Na semana passada, foi divulgado o resultado de uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre o que pensam os brasileiros a respeito do estupro. Embora estarrecedor, o resultado não me surpreendeu, visto que, como bem sabe o leitor habitual deste espaço, não faço parte dos que dizem que a nossa sociedade é maravilhosa etc.
Chamou-me a atenção este item da pesquisa, do tipo concorda/discorda: "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros".
A redação da frase permite que nela se veja a afirmação de que a mulher não sabe se comportar, o que é quase uma acusação, uma transformação da vítima em culpada. Que horror! Parece que a esse pessoal falta leitura de boas obras que tratam da análise do discurso.
Bem, e o que isso tem que ver com a nossa conversa sobre os conectivos adversativos ("mas" etc.)? Com a palavra, uma conhecida figura da vida pública deste país: "Tá bom, tá bom, tá com apetite sexual, estupra, mas não mata". Como se vê, o autor da frase não pôs o conectivo "mas" na oração do verbo "estuprar", mas na do verbo "matar", o que significa que, para ele, o importante é não matar.
Se pensarmos que esse cidadão já foi eleito diversas vezes (com muitos votos de mulheres!) e se compararmos as suas votações com os índices das respostas às perguntas da pesquisa do Ipea, talvez encontremos alguma relação entre os dois fatos. É isso.
inculta@uol.com.br
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