Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.
O dito-cujo
O cartão de crédito venceu, o banco mandou o novo etc. Com o cartão, uma cartinha: "Confirmo que o cartão xxx está em meu poder, cuja emissão foi por mim autorizada".
O caro leitor notou o que foi feito com o pobre pronome "cujo"? Repito o trechinho: "...o cartão xxx está em meu poder, cuja emissão foi por mim autorizada...". O foi que autorizei? A emissão, é claro. Do quê? Do cartão, certamente, mas... Mas o pronome "cujo" vem depois de "poder", e não de "cartão"...
A mensagem não seria mais clara se tivéssemos outra ordem e/ou outros termos? Vejamos esta possibilidade: "Confirmo que o cartão xxx está em meu poder e que sua emissão foi por mim autorizada".
Como se vê, foi perfeitamente possível redigir a mensagem sem o pronome "cujo", que, quando usado adequadamente, relaciona dois substantivos, entre os quais se estabelece uma relação de posse. Em "Aquela escritora, cuja obra é intemporal, sempre foi clara em relação a isso", por exemplo, o pronome relativo "cujo" relaciona os substantivos "escritora" e "obra" (a obra é da escritora, é dela, pertence a ela).
Vejamos isso tomando como exemplo estes versos de Vinicius de Moraes (de "Serenata do Adeus"): "Ai, que amar é se ir morrendo pela vida afora / É refletir na lágrima um momento breve / De uma estrela pura cuja luz morreu". O que foi que morreu? Foi a luz de uma estrela pura, certo? Mais uma vez, o pronome "cuja" cumpre o seu papel, que, no caso, é o de relacionar os substantivos "estrela" e "luz" (a luz é da estrela, é dela, pertence a ela).
Na língua viva de hoje, sobretudo na fala, o "cujo" agoniza. Em seu lugar costuma entrar o "relativo universal", isto é, o "que", verdadeiro "pau para toda obra". O que no padrão formal seria "Não se sabe o nome da empresa cujos diretores participaram dessas negociatas" se transforma em "Não se sabe o nome da empresa que os diretores...".
Essa falta de "prática" no uso do relativo "cujo" muitas vezes gera construções um tanto bizarras, como a que foi abordada há um bom tempo pela Unicamp, numa questão baseada numa carta que um leitor escreveu à Folha, na qual havia este trecho: "E que a esse PFL e ao Brizola (cuja ficha de filiação ao PDT já rasguei) reste a vingança do povo".
Como se vê, parece que o tal leitor quis dizer que rasgou a sua própria ficha de filiação ao PDT, mas o que de fato disse é outra história. O indignado leitor disse que rasgou a ficha de filiação de Brizola ao PDT...
Na TV, o pronome "cujo" é maldito. Não se usa e pronto! O motivo? É mais do que bizarro: os colegas do jornalismo televisivo dizem que não usam "cujo" porque esse pronome começa por... Pois é. Vá entender... Por que é que não deixam de usar "cúbico", "cúmulo", "cunhado"?
O fato é que o emprego do relativo "cujo", no mínimo, estimula o raciocínio. Para que se chegue, por exemplo, a uma construção como "É fundamental conhecer essas obras, em cujas páginas se encontram verdadeiras maravilhas da poesia brasileira", é preciso ser capaz de notar o passo a passo da "montagem": as obras têm páginas, as páginas são delas (disso nasce a sequência "cujas páginas").
E de onde vem o "em" que antecede "cujas"? Ora, essas verdadeiras maravilhas da poesia brasileira não estão NAS (em + as) páginas dessas obras? Está explicado, não? É isso.
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