Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.
O nobilíssimo ponto e vírgula
Estava na "capa" do UOL ontem: "Medo de ser assassinado atinge 3 em 4 brasileiros; 67% de jovens temem a PM". Por favor, veja o ponto e vírgula, prezado leitor. Que faz ele aí? É correto o seu emprego?
Antes que nos detenhamos na questão do uso desse sinal de pontuação, convém dizer que, antes do "(Des)Acordo Ortográfico", a grafia oficial era "ponto-e-vírgula", com dois hifens (ou hífenes), como se vê.
O "(Des)Acordo" acabou com o hífen nos compostos de três ou mais elementos que não nomeiem espécies botânicas ou zoológicas. Tradução: o hífen nos compostos de três ou mais elementos só existe nos nomes de bichos e vegetais, como "jacaré-de-papo-amarelo", "acácia-da-austrália", "flor-da-quaresma", "macaco-da-meia-noite" etc.
É sempre bom lembrar as bizarras exceções ("pé-de-meia", "arco-da-velha", "água-de-colônia" etc.).
Posto isso, voltemos ao título do UOL e ao ponto e vírgula que há nele. Esse título diz respeito a uma pesquisa realizada pelo Datafolha e publicada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O tema da pesquisa, obviamente, é a violência no Brasil, que, como se sabe, é um país pacífico, solidário etc., etc., etc.
Daniel Guimarães - 15.mar.2015/Folhapress | ||
PM durante operação na zona oeste de São Paulo |
As duas informações que há no título são distintas: a primeira diz respeito ao medo de ser assassinado, sentimento de 76% dos entrevistados; a segunda diz respeito ao temor que 67% dos jovens entrevistados têm da Polícia Militar.
As informações são distintas, mas integram o mesmo assunto, o mesmo campo, o mesmo território, por isso foi empregado (corretissimamente) o ponto e vírgula, que separa o primeiro bloco, completo, autônomo etc., do segundo bloco, também completo, autônomo etc.
O papel do ponto e vírgula é sempre o de separar partes autônomas de um todo, isto é, blocos que apresentam sentido e informação completos e pertencem ao mesmo conjunto, ao mesmo assunto.
Seria inconcebível pensar no ponto e vírgula em algo como "Quando penso no teu rosto; fecho os olhos de saudade" (do poema "Marcha", de Cecília Meireles, que Raimundo Fagner adaptou, musicou e transformou em "Canteiros"). Por que seria inconcebível o ponto e vírgula depois de "rosto"? Porque a oração "Quando penso no teu rosto" é subordinada à oração "Fecho os olhos de saudade" (que é a oração principal). O que cabe aí é uma vírgula, que foi justamente o que fez Cecília.
Agora veja o trecho todo: "Quando penso no teu rosto, fecho os olhos de saudade; tenho visto muita coisa, menos a felicidade."
O caro leitor notou que a grande Cecília Meireles empregou o ponto e vírgula? O caso é semelhante ao que vimos. Embora Cecília pudesse ter optado pelo ponto final, a sempre inspirada escritora carioca optou pelo ponto e vírgula, o que certamente deixou mais forte a mensagem, por integrar os blocos que falam do mesmo sentimento (perda, falta, desalento, tristeza).
Para sentir a força que o ponto e vírgula confere ao fragmento de Cecília, imagine-o com ponto final. A redação, que pareceria primária, certamente seria frouxa, fraca.
Lamentavelmente, a escola hoje pouco se ocupa dessas coisas (ou simplesmente não se ocupa). O efeito dessa falta de referência a esses e a outros aspectos da construção de um texto é devastador. Capta-se menos do que se poderia captar dos encantos do que se lê. É isso.
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