É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.
Gambiarras gloriosas
Aproveitando a presença de uma recém-nascida em casa desde o começo da semana, fiz o que qualquer pessoa sensata faria em circunstâncias semelhantes: pus-me a meditar sobre os mistérios da moleira.
Esse eterno motivo de broncas para os irmãos mais velhos ("Não põe a mão na cabecinha dela, moleque!") pode ter um elo insuspeito com a gênese do cérebro avantajado e complexo do qual a nossa espécie tanto se orgulha.
Uma das principais pistas a esse respeito é o crânio de uma criança novinha que viveu há 2,5 milhões de anos, na África do Sul.
OK, "criança" talvez não seja o termo mais adequado, porque Taung, como ficou conhecido esse fóssil, era um membro da espécie Australopithecus africanus. Trata-se de um menino-macaco bípede, portanto, que morreu com três anos.
Ocorre que Taung, embora certamente já corresse pela savana, ainda tinha parte da moleira – a sutura metópica, localizada bem no meio da testa, entre as duas metades do osso frontal do crânio. A moleira, portanto, nada mais é que a área de tecido "mole", não ossificado, que existe entre os pontos onde os ossos cranianos se encaixam.
Conforme a criança vai crescendo, a tendência é essas suturas virarem osso também, mas frequentemente o processo é bem demorado ou nunca se completa: um terço das crianças e dos adolescentes humanos ainda têm ao menos parte da tal sutura não ossificada.
Pesquisadores capitaneados pela paleoantropóloga Dean Falk, da Universidade do Estado da Flórida, após analisarem a moleira de Taung, fizeram um extenso estudo comparativo dessas estruturas cranianas em outros fósseis e primatas atuais.
Resultado: a moleira "clássica", que demora de vários meses a anos para fechar, é uma exclusividade da linhagem evolutiva que desemboca no homem moderno.
Chimpanzés e outros grandes macacos de hoje possuem suturas metópicas que se fecham logo depois do nascimento, enquanto o crânio de outros australopitecos, bem como o de espécies de ancestrais do homem que vieram depois, parecem seguir o padrão humano, com moleiras que demoram a fechar.
Vem daí a hipótese de Falk e seus colegas: esse tipo de sutura de "endurecimento lento" seria uma adaptação dedicada a facilitar a formação do cérebro tipicamente humano.
Uma possibilidade é que as moleiras dos nossos bebês tenham surgido para lidar com o chamado dilema obstétrico – o canal vaginal dos nossos ancestrais, como consequência do andar bípede, ficou relativamente estreito para bebês tão cabeçudos quanto os nossos.
A moleira mitiga esse dilema porque permite que os ossos frontal e parietal (o do topo do crânio) "deslizem" um pelo outro, permitindo a passagem da cabeça do neném. Mais importante ainda, a estrutura permitiria o crescimento acelerado do cérebro após o nascimento, e isso justamente na região do órgão ligada às funções mais complexas da mente humana.
Tudo isso, é claro, tem um preço: a relativa fragilidade da cabeça dos nossos filhotes por vários meses.
O resumo da ópera é que não somos o que há de melhor na natureza – somos o que dá pra fazer, como de resto todas as coisas vivas, e isso já é mais do que suficiente.
E agora, se vocês me dão licença, vou ali no berço dar um beijo na gambiarra mais gloriosa que o Universo já produziu.
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