renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Olho por olho
Na semana que passou, o leitor testemunhou um episódio singular. No intervalo de 24 horas compreendido entre duas edições, viu um jornalista do primeiro time passar uma descompostura pública no presidente da República, para em seguida desculpar-se com igual ênfase por ter cometido um grave erro.
O protagonista da história foi Elio Gaspari, e ela começou na quarta-feira, um dos dois dias da semana em que Folha, "O Globo" e "Zero Hora" publicam regularmente textos do colunista (o outro é domingo). Gaspari analisava o discurso de FHC, ou FFHH, como prefere escrever, a ex-chefes de governo no Rio de Janeiro.
O presidente dissera que "no momento das reformas, o político deve ser muito cuidadoso, porque os que melhor vão se beneficiar com as reformas ainda não sabem disso. E os que começam a perder sabem de imediato".
Arrematou: "Isso é Maquiavel".
As credenciais intelectuais de Fernando Henrique Cardoso costumam intimidar aliados e adversários. Pouca gente apostaria em um escorregão do presidente-sociólogo ao citar o pensador florentino.
Foi o que Gaspari fez. Do início ao fim da coluna, procurou demonstrar que FHC andava "tomando liberdades indevidas com os clássicos". E apresentou ao leitor o que seriam as palavras de Maquiavel antes de terem sido embaralhadas pelo presidente:
"As ofensas devem se fazer todas de uma vez, a fim de que, tomando-se-lhes menos o gosto, ofendam menos. E os benefícios precisam ser realizados pouco a pouco, para serem melhor saboreados."
Maquiavel escreveu a frase acima. O único e sério problema é que ele escreveu também o que dissera o presidente.
PEDIDO DE DESCULPAS
"Uma coisa nada tinha a ver com a outra", resumiu Gaspari no dia seguinte. Sob o título "Pedido de desculpas a FFHH e aos leitores", a retratação ocupou espaço semelhante ao do corretivo infundado que o jornalista aplicara ao presidente.
"Quem transgrediu a lógica das citações, misturou conceitos e embaralhou capítulos não foi FFHH, mas o signatário."
Em conversa com a ombudsman, Gaspari descreveu o caminho que o conduziu ao desastre.
Ele escreveu a coluna no Rio de Janeiro, onde não dispunha de seu exemplar de "O Príncipe". Recorreu à Internet para conferir se procedia sua desconfiança em relação ao discurso do presidente.
Localizou a obra. Caiu na armadilha de realizar a busca a partir da palavra italiana "bene" (bem).
Surgiu no computador o famoso trecho sobre fazer o bem aos poucos e o mal de uma só vez. Estava armada a confusão. Gaspari concluiu que o presidente cometera uma gafe.
Já em São Paulo, por volta de 2h de quarta-feira, teve à mão seu "Príncipe" em formato tradicional. Decidiu fazer uma última checagem. Correu as páginas e, por volta do terceiro capítulo, percebeu que Maquiavel não o salvaria.
Na madrugada em que eram distribuídos os jornais com a primeira coluna, Gaspari escreveu o pedido de desculpas. O texto chegou à Redação às 4h43.
RECOLHER ADJETIVOS
O episódio toca em uma questão frequentemente abordada pelo leitor no contato com a ombudsman: a correspondência (ou falta de) entre o dano causado pelo jornal e o reparo publicado.
No caso, o erro foi feio. Gaspari, 54 anos e 34 de profissão, um dos nomes mais importantes da imprensa brasileira, construiu todo um raciocínio para corrigir o presidente da República a propósito de uma transgressão que não existiu.
O tropeço factual do jornalista foi o ponto de partida para um estrago maior, porque carregado de subjetividade.
Em sua defesa, Gaspari tem o fato de que fez um serviço completo na hora de se retratar.
Considerou que um "erramos" seria insuficiente. Não se tratava apenas de corrigir o engano relativo à citação de Maquiavel, mas de recolher os adjetivos despejados sobre FHC.
Não só dedicou toda uma coluna à reparação, mas o fez em tempo quase real _é exceção haver texto seu às quintas-feiras no jornal.
PESOS E MEDIDAS
Resta uma pergunta importante: o jornalista teria agido da mesma forma se o atingido não fosse o presidente? Gaspari reconhece ter dúvidas a esse respeito. Diz que certamente se retrataria, como fez outras vezes.
Mas admite que, fosse outro o personagem envolvido, talvez não tivesse tomado providência tão imediata e radical.
Pondera, no entanto, que dificilmente teria escrito uma coluna com aquelas características a respeito de alguém que não Fernando Henrique Cardoso.
O erro de Gaspari incomoda o leitor, por ser do tipo em que este identifica uma atitude de superioridade frequentemente associada aos jornalistas.
Ao mesmo tempo, a transparência com que o expôs ajuda a neutralizar esse efeito. No levantamento diário que a Folha realiza junto a assinantes, vários manifestaram apoio ao comportamento do colunista.
Entre o dano e o reparo, o certo é evitar o primeiro e jamais fugir do segundo, apesar de todo o constrangimento.
*
O atendimento ao leitor estará suspenso nesta semana. De hoje a quarta-feira, participarei da convenção da Organização de Ombudsmans de Imprensa (ONO), que este ano acontece em San Diego (Califórnia, EUA).
Durante minha ausência, os casos mais urgentes serão encaminhados diretamente à Secretaria de Redação. Todas as mensagens serão respondidas a partir do dia 18. Até lá.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade