renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
O diabo dos números
Na quinta-feira, a Folha deu manchete a uma ferida social de gravidade alarmante: o crescimento da violência contra crianças e adolescentes.
Baseada em números do Pro-Aim, programa de informações sobre mortalidade da Prefeitura de São Paulo, e do Ministério da Saúde, a reportagem de José Roberto de Toledo mostrou o avanço do homicídio como causa de morte nas faixas etárias de 5 a 9 e de 10 a 14 anos, na cidade e no conjunto das capitais do país.
Entre os casos relatados havia o de uma menina de 18 meses morta com oito tiros, a maioria no rosto, em chacina na periferia paulistana.
Embora convencida da brutalidade do problema abordado pela Folha, terminei a leitura com algumas dúvidas de ordem técnica, que apresentei à Redação na crítica interna.
Em primeiro lugar, chamou minha atenção o fato de que a manchete ''Homicídio é a 1ª causa de morte entre 10 e 14 anos'' foi ancorada em diferença mínima: 62 assassinatos em São Paulo, nessa fatia da população, durante o ano passado, contra 61 mortes causadas por acidentes de trânsito.
Essa margem estreita entre os números absolutos não apareceu na Primeira Página. O texto da capa mencionava apenas os 62 homicídios.
O quadro que o acompanhou indicava o equilíbrio entre os dois fatores. Ali estavam os percentuais correspondentes às principais causas de morte. No topo, assassinatos, com 17,3% dos 359 óbitos. Quase na mesma altura, acidentes de carro, com 17%.
Observei também que o levantamento do Pro-Aim apontava em terceiro lugar, com 37 óbitos, ou 10,3% do total, um item denominado ''demais acidentes''.
Ponderei aos jornalistas que, somados os acidentes de trânsito e os outros, seria possível interpretar que esse grupo foi responsável por um número de mortes bem superior ao de homicídios _98 contra 62.
Por fim, senti falta na reportagem de alguns dados de apoio, em especial do universo da população nas duas faixas etárias analisadas. Esse número poderia não alterar as conclusões apresentadas, mas ajudaria o leitor a avaliar as dimensões do problema.
Em resposta à minha primeira observação, Toledo defendeu o destaque dado pela Folha à liderança dos homicídios, explicando que a situação é inédita na cidade.
Argumentei que isso não constava da matéria. Ele disse ter preferido deixar de lado tal afirmação para não misturar dados do Pro-Aim aos do Ministério da Saúde. Justo, mas então não é o caso de levá-la em conta agora.
Sobre meu segundo ponto, o da preponderância dos acidentes em geral sobre os homicídios, o repórter esclareceu que a separação adotada pelo programa da prefeitura, e respeitada pelo jornal, obedece às normas da Classificação Internacional de Doenças (CID).
Mortes provocadas por acidentes de trânsito são contabilizadas separadamente porque se considera que elas são passíveis de prevenção por meio de políticas públicas.
Sob o guarda-chuva dos ''demais acidentes'' estão abrigadas ocorrências como afogamentos, quedas, eletrocussão e envenenamentos.
Toledo concordou com a ombudsman sobre a importância dos dados de apoio. Mas considerou que a comparação essencial foi feita: a evolução dos homicídios frente à evolução do total de mortes.
O cruzamento mostrou que, tomados os primeiros cinco anos desta década e o mesmo período da anterior, os assassinatos cresceram a um passo muito mais acelerado do que as mortes entre 10 e 14 anos.
Na faixa dos 5 aos 9, avançaram na contramão do total de mortes, que diminuiu.
Encerrado o exame, concluí que no material publicado há um item que não se sustenta: o título interno. Não confere com o texto a afirmação de que ''Homicídio é o que mais mata crianças''. Na faixa que mais abrange a infância entre 5 e 9 anos, ele é a sexta causa de morte, segundo o levantamento.
Compreendo as limitações de espaço que atormentam a edição na hora de preparar títulos, mas há um limite que não se pode ultrapassar.
Descontado esse tropeço, as constatações do jornal estavam amparadas nos números, e sem dúvida tratavam de uma situação grave.
Penso, no entanto, que a Folha ''forçou a mão'' na manchete, seja pela diferença estreita, seja porque nada impede uma interpretação alternativa de que as causas acidentais ainda matam mais.
"Acho importante que haja uma discussão metodológica sobre o uso de estatísticas nas reportagens, pois sua aplicação tende a ser cada vez mais recorrente'', diz Toledo, cujo trabalho nessa área vem rendendo bons frutos ao jornal.
A reflexão precisa ser feita com urgência. Baseada em pesquisas de todo tipo, a Folha por vezes apresenta conclusões que não param em pé, e a própria edição de quarta-feira trouxe exemplo disso.
Na sequência da reportagem sobre o levantamento do Pro-Aim, a editoria de Cidades estampou: ''Parente é principal autor de morte infantil''. Explicação complementar: ''Pais, tios, irmãos e avós foram os autores de 34,4% dos homicídios de crianças registrados em 1997''.
Impressionante, se fosse verdade. A leitura do texto revelava que não eram mortes ''registradas'', como anunciado no alto da página, mas "assassinatos noticiados por jornais de 14 Estados'', analisados pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos.
Como é possível se basear em pesquisa realizada a partir de jornais para fazer uma afirmação como essa? E os homicídios que não são noticiados?
Daniela Falcão, autora da matéria, reconheceu as ''limitações técnicas'' do levantamento, mas defendeu sua publicação ''por abordar um assunto sobre o qual pouco se fala e se sabe no Brasil''. Muito nobre, mas isso não autoriza o jornal a tomar tamanha liberdade com números.
A repórter da Sucursal de Brasília frisou não ter feito ''inferências que extrapolassem as informações contidas no levantamento''. Mais ou menos. A abertura do texto dava a entender que se tratava de conclusão geral.
O título não sobrevive nem sob a perspectiva redutora da pesquisa. Segundo ela, enquanto 34,4% dos homicídios estudados foram cometidos por familiares, 55,3% tiveram autor ignorado.
Como se vê, está mais do que na hora de o jornal refletir sobre o que pode ou não ser dito a partir de estatísticas. Usadas com discernimento, elas são valioso instrumento de trabalho para o jornalista.
Do contrário, tudo pode acabar mal. Na conversa com a ombudsman, Toledo lembrou a frase de um Nobel de Economia: ''Bem triturados, os números revelam qualquer coisa''. Neste último caso, a Folha os triturou até sobrar um grande equívoco.
*
Tinha decidido não voltar tão cedo ao tema dos quadrinhos. Mas aconteceu de novo, e desta vez foi muito pior.
Um leitor telefonou à ombudsman para apontar a repetição não de uma, mas de cinco tiras que haviam saído em abril passado. Foram republicadas nos últimos dias.
Seu autor, Glauco, assumiu a responsabilidade pela ''reciclagem''. Alegou ter enfrentado problema de equipamento.
O "erramos'' saiu ontem. Tem razão o leitor que escreveu que a Folha não leva a sério a edição dos quadrinhos.
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