renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
A coragem de não publicar
Entre os casos que podem surgir diante de um ombudsman de jornal, talvez não exista um mais concreto do que o oferecido pela Folha na semana passada: denúncia grave contra candidato a presidente, publicada em manchete e depois desmentida.
''Carro de Lula foi para doador eleitoral'', afirmava o título da Primeira Página de sábado, dia 15. Baseada em registro do Detran, a reportagem sustentava que o candidato do PT vendera seu Omega, em janeiro de 96, para a Baralt Comércio de Veículos, e não para o amigo Roberto Teixeira, como havia sido divulgado pelo partido.
O texto acrescentava que a empresa foi a segunda maior doadora da campanha petista de 94. Com ele, a Folha fincou bandeira própria na atual temporada de investigações sobre Lula, iniciada quando a Rede Bandeirantes levou ao ar, no dia 12, reportagem sobre supostas irregularidades envolvendo a compra do apartamento do candidato, em São Bernardo.
Os sinais do equívoco começaram a chegar à Redação no mesmo fim-de-semana em que circulou a manchete. No domingo, advogado do PT apresentou nota fiscal indicando que Lula comprara o carro da revendedora, transação inversa à que fora noticiada.
O jornal relatou esse desdobramento na segunda-feira, mas manteve sua versão. Continuou a sustentá-la na terça-feira, embora registrando que encontrara ''incongruências'' em novo rastreamento a respeito do Omega.
Dessa vez, os arquivos do Detran mostravam:
a) um extrato igual ao obtido anteriormente pelo jornal;
b) dois registros diferentes do carro 0 km, um em nome de Lula, outro em nome da Baralt.
A essa altura, o PT já pedia o desmentido. Ele veio na quarta-feira, depois que a diretoria do Detran-SP bateu o martelo sobre a trajetória correta do carro: a Baralt vendeu à Lula, que vendeu a uma empresa chamada Express Factoring, que vendeu a uma mulher de nome Janett Correia.
Na tentativa de compreender o que se passou, ouvi jornalistas envolvidos no episódio e a diretoria do Detran. Fui informada de que uma fonte da Folha no departamento realizou, a pedido do jornal, o primeiro rastreamento. Com o resultado, mais a referência à importância da Baralt na campanha passada, foi feita a manchete.
A grita do PT levou o jornal de volta aos arquivos, mas dessa vez pela via oficial. Apuração do Detran concluiu que a fonte fornecera um primeiro registro do veículo, no qual havia um ''lapso'', e não o registro definitivo. Reside aí uma divergência de interpretação entre a Folha e o Detran.
O jornal considera ter sido induzido ao erro pela existência de dados conflitantes nos arquivos. Em carta publicada ontem, o departamento ''não reconhece erro'' seu apesar do ''lapso'' admitido em certidão anterior. Alega que a informação usada ''não era regular e quem a forneceu não a obteve de forma lícita e completa''.
Não existe problema no fato de a Folha ter conseguido o registro do carro por caminho extraoficial. Foi investigação jornalística legítima. Se a imprensa se limitasse a esperar que autoridades lhe dessem acesso a documentos, muita coisa importante jamais teria vindo à tona.
Existe, sim, problema no fato de a Folha ter publicado a denúncia, e com destaque máximo, amparada apenas no extrato dos computadores do Detran _mesmo órgão que, em manchete de abril, o jornal acusou de licenciar, por falhas nos procedimentos de registro, carros roubados.
Era preciso checar a informação junto a outras fontes e ouvir o que Lula tinha a dizer. Necessário como regra geral, o cuidado deveria ter sido redobrado porque estamos em campanha eleitoral, e a acusação recaiu sobre um candidato, o segundo nas pesquisas.
Diante da pouca competitividade da atual disputa, alguns se esquecem de que denúncias desse calibre podem, no limite, mudar o rumo de uma eleição. Nesses casos, a retificação não repara o dano.
Eleonora de Lucena, secretária de Redação, considera que não houve falha de procedimento na publicação da reportagem a partir dos elementos disponíveis. ''Tínhamos um documento do Detran.'' Ela acrescenta que, uma vez constatado o erro, o comando do jornal fez uma autocrítica e avaliou que deveria ter havido mais cautela. ''Mas, no momento da publicação, não havia motivos para duvidar do documento.'' A secretária de Redação lembra ainda que a Folha não buscou esconder o erro.
É verdade. O desmentido ocupou 5 das 6 colunas de texto no alto da capa, destaque muito próximo ao da notícia infundada. Como única ressalva, pondero que a Primeira Página retificou a história, mas não disse, com todas as letras, que havia abrigado manchete errada.
Entre os leitores que procuraram a ombudsman para comentar o episódio, muitos enxergaram nele um exemplo de que a Folha perseguiria Lula. Minha avaliação é que, com os mesmos elementos, o jornal dificilmente acusaria o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Cabe perguntar se, com os mesmos elementos, o jornal acusaria o presidente Fernando Henrique Cardoso. É preciso lembrar, no entanto, que partiu da Folha o mais contundente ataque ao governo nestes quatro anos _a revelação da compra de votos para aprovar a emenda constitucional da reeleição.
A manchete sobre o carro de Lula não é fruto de conspiração, mas da necessidade quase compulsiva da imprensa de veicular denúncias. O jornal se precipitou na tentativa de recuperar uma suposta vantagem estabelecida pela concorrência.
Nesse cenário, pratica-se um jornalismo de suposições: supõe-se que alguém lucrou com a não-desapropriação do terreno onde foi construído o apartamento de Lula; supõe-se que há maracutaia se o carro foi vendido (e não foi) a um financiador de campanha.
Atingido agora, o PT não é vítima inocente desse método. Em parceria com jornalistas, deputados do partido disseminaram a prática de vazar denúncias para depois obter visibilidade pedindo providências ao Ministério Público. Há uma frase simbólica no final da reportagem de sábado passado.
Após tentativa frustrada de obter informações complementares junto a um dos proprietários da Baralt, escreveu-se que ''só seria possível checar o caminho do Omega na segunda-feira''.
Por que então a Folha não esperou? Um jornal jamais deve abdicar da investigação independente, e estará morto se perder o apetite pelo furo. Mas há momentos em que a coragem está em não publicar.
O leitor saberá reconhecê-la. * A Direção de Redação me informa que a editora do Folhainvest, Mara Luquet, escreve hoje nesta página sobre a avaliação do caderno feita pela ombudsman há uma semana.
De acordo com a praxe, responderei no próximo domingo, se julgar necessário.
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