renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Justiceiros do papel
Às vezes, os deslizes acontecem nas grandes coberturas. Outras, em histórias que nem chegam à Primeira Página.
O dano não é necessariamente menor no segundo caso. Na edição de segunda-feira, entre a demissão do gabinete russo e os resultados do futebol, a Folha registrou a morte de um rapaz de 22 anos, arremessado de sua Kawasaki Ninja depois de uma briga de trânsito em São Paulo.
Na madrugada de domingo, Franco Giobbi e um amigo dirigiam suas motocicletas na av. Sumaré.
Teriam sido fechados e, após discussão, perseguidos por um Tempra. Interceptado pelo carro, o estudante foi lançado da moto. Teve morte instantânea.
O motorista do Tempra, Crauzemberg Casotti Campos, 42, está preso. Foi indiciado sob acusação de homicídio doloso (intencional). Sua noiva, que ocupava o banco do acompanhante, sofreu ferimentos no rosto e nos braços. Era correta a reportagem de segunda-feira.
Tomava com a devida cautela os dados do boletim de ocorrência. Trazia a versão do amigo de Giobbi e também a de Campos, que falou à Folha na delegacia.
Segundo o operador de câmbio, aluno do último ano de faculdade de comércio exterior, os jovens teriam insultado sua noiva e o agredido. Ele alega ter perdido o controle do carro.
O caso caminhava para um acompanhamento discreto. Desconfio que nem teria saído em abertura de página se a vítima não pertencesse a uma família tradicional.
É terrível que seja assim, mas episódios de violência no trânsito, mesmo aqueles com desfecho trágico, não causam mais grande espanto na cidade de São Paulo.
Na quarta-feira, no entanto, a história voltou a ganhar destaque. Foi tema da coluna que Barbara Gancia assina duas vezes por semana na página 2 do terceiro caderno.
Em tom emocionado, a jornalista contou que conhecia Franco Giobbi desde o nascimento. Mencionou as dificuldades do garoto por ter perdido o pai cedo, e disse que nos últimos tempos ele mostrava estar dando a volta por cima. Em seguida, com base no relato do rapaz da outra moto, descreveu os eventos da madrugada de domingo.
Tudo o que na reportagem de segunda-feira era hipótese, em seu texto tornou-se certeza. ''Faço questão de repetir para que fique bem marcado na mente do leitor'', escreveu a jornalista depois de fornecer, pela terceira vez, o nome completo do motorista do Tempra.
Embora ainda não tenha sido divulgado o resultado dos exames toxicológicos, a coluna afirma que Campos estava completamente bêbado. Os ombudsmans da Folha não costumam tratar da opinião dos colunistas do jornal. Cada um tem a sua.
Mas, neste caso, a questão é outra. O texto de Barbara Gancia exala envolvimento pessoal no caso. Quando se trata de colunistas, isso não é, em princípio, errado. Conta a favor dela não ter procurado esconder esse envolvimento, pelo contrário.
O problema é que não foi comentário o artigo levado ao leitor. Apresentou-se como fato consumado o que, até o momento, é menos do que isso. É possível compreender a jornalista.
Uma tragédia como a agora enfrentada pelos familiares de Franco Giobbi traz à tona os sentimentos mais extremos. Nada parece capaz de conter a revolta. Mas não é possível aceitar que o jornal se antecipe à Justiça e alimente um sentimento de condenação prévia.
Foi precisamente o que aconteceu neste caso. No mesmo dia da publicação da coluna, recebi cópia de carta endereçada à Barbara Gancia por uma leitora que também manifestava envolvimento pessoal na história. Ela mora com os pais na mesma rua em que Crauzemberg vive com a mãe, na Freguesia do Ó.
As duas famílias se conhecem há muitos anos. A leitora disse acompanhar e admirar trabalho de Barbara Gancia. Não procurou afirmar a inocência de Campos, mas protestou contra sua "execração pública''.
''Uma mesma história, dependendo de quem a conta, pode ter mais de uma versão. Antes de aceitarmos uma delas como definitiva, faz-se necessária a apuração de todas as circunstâncias que a envolveram'', escreveu.
A ombudsman tentou ouvir Barbara Gancia, mas a colunista está nos Estados Unidos e não pôde ser localizada. Foi procurado também o advogado de Campos.
Em conversa telefônica, ele pediu para não ser identificado. Disse que não sabe se permanecerá no caso. Diante do que já foi feito, a Folha deveria redobrar seus cuidados ao tratar do assunto.
O "Jornal da Tarde", por exemplo, sentenciou em título na quinta-feira que a noiva ''incriminara'' Campos ao depor. A leitura do texto desautorizava o enunciado.
É imprescindível garantir a publicação dos argumentos de ambos os lados e evitar novos pré-julgamentos. É o que determinam a lei, o ''Manual da Redação'' e as noções mais básicas de isenção. Se não for assim, viramos todos justiceiros do papel.
Há uma semana, a editora do Folhainvest procurou mostrar que seriam infundadas as preocupações da ombudsman com o tipo de jornalismo praticado naquele caderno.
O noticiário dos últimos dias demonstra de maneira cristalina que não pode haver espaço, em uma publicação séria, para o tratamento deslumbrado das aplicações em Bolsas de Valores.
Assim, é desnecessário tomar tempo do leitor passando meus argumentos em revista. Em confronto com o didatismo que a Folha prega e busca aperfeiçoar, a editora não viu problema no destaque incipiente que vinha sendo dado aos riscos embutidos nos investimentos recomendados, porque ''não podemos subestimar a capacidade de discernimento do leitor''.
Diante de tal filosofia, é curioso notar que, na última segunda-feira, o Folhainvest surgiu carregado de expressões como ''cuidado'' e ''cautela'' em seus títulos, até mesmo com alguma redundância, em flagrante contraste com o tom festivo das primeiras edições.
Não é o bastante. Para um caderno que pretende ser de serviço, o Folhainvest ainda está excessivamente atrelado a um jornalismo de declarações. Mas já é alguma coisa.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade