renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
A eleição vista no espelho
Aos olhos do leitor, as falhas do jornal ficam mais graves quando vêm embrulhadas em arrogância.
Foi o que aconteceu no domingo passado, quando a Folha publicou os resultados do exame a que submeteu seu noticiário eleitoral.
De 18 de agosto (início da propaganda gratuita) a 15 de setembro, foram esquadrinhados textos, fotos e artes de alguma forma relacionados aos principais candidatos que concorrem à Presidência e ao governo de São Paulo.
O jornal aprovou o que viu. Concluiu que o ''levantamento mostra equilíbrio no noticiário'', porque o espaço destinado a cada um dos postulantes foi ''proporcional às taxas de intenção de voto'' e ocupado, em sua maior parte, por material ''neutro''.
Esse diagnóstico resultou em protestos veementes à ombudsman ao longo da semana.
Como era de esperar, entre os reclamantes estavam Lula (por meio de carta da direção da campanha petista) e Ciro Gomes, segundo e terceiro colocados, respectivamente, na disputa pelo Planalto.
Para o PT, ao dividir as notícias entre positivas, negativas e neutras a Folha ignorou que o ''grau de negatividade'' de reportagens como as que trataram do carro e do terreno de Lula é muito superior ao das críticas feitas ao presidente Fernando Henrique Cardoso, líder nas pesquisas.
O partido pergunta por que não foi analisado o período em que houve empate técnico entre os dois candidatos (início de junho), e aponta, com base nos dados semanais, que o espaço de Lula vem caindo.
Ciro Gomes argumenta, em primeiro lugar, que em seu caso há uma disparidade flagrante entre presença no jornal (1,76%) e intenção de voto (8% no penúltimo Datafolha, usado na comparação com os números do levantamento).
Em seguida, questiona o critério adotado para definir o espaço adequado a cada candidatura. No entender do ex-governador, "essa pretensa proporcionalidade não se traduz em bom jornalismo, mas em reprodução cartorial do discurso governista''.
As reclamações não partiram apenas dos personagens do noticiário. Sem paciência para longos debates, um leitor enviou por fax a reprodução da página publicada no domingo. Ao lado do título principal, que ele destacou com um círculo, escreveu que a Folha havia menosprezado sua capacidade intelectual.
''O jornal pode ter os candidatos que quiser'', afirmou um outro. ''Pior é fazer uma matéria em que os números demonstram uma coisa, e os textos e manchetes dizem outra.''
Um terceiro encaminhou uma série de perguntas para externar sua desconfiança das conclusões do levantamento, acrescentando que o fazia ''mesmo sabendo que é impossível ganhar qualquer discussão com a Redação, e correndo o risco de ter de aguentar a truculência das respostas''.
Houve outros protestos, mas os que descrevi resumem o estado de espírito daqueles que procuraram a ombudsman.
Vários problemas, que procurei esboçar na crítica interna de segunda-feira, emergem do levantamento da Folha.
O mais visível deles talvez seja a supremacia do candidato chamado ''governo federal''. Explico: diante da novidade da reeleição, introduziu-se no estudo essa rubrica, destinada a abrigar notícias referentes à administração com reflexos na campanha.
O resultado é um rolo compressor. Com 51,61% (confira no quadro), o governo lidera a distribuição de espaço, enquanto seu ocupante aparece em segundo lugar (30,42%).
O próprio diferenciamento entre FHC e sua Presidência é bastante questionável. Criado para distinguir itens informativos até certo ponto heterogêneos -um comício e o aumento dos juros, por exemplo_, ele não resiste a escrutínio.
Perguntei à Redação em que categoria havia sido colocado o discurso sobre a crise econômica feito por Fernando Henrique na quarta-feira (a medição continua a ser realizada). Resposta: ''governo federal''.
Sem dúvida, aquelas foram palavras do presidente de um país que perdeu US$ 30 bilhões em 45 dias. Mas, se não fossem também um calculado gesto de campanha, por que teriam ido parar no programa de TV do candidato?
Portanto, é legítimo considerar que o espaço ocupado direta ou indiretamente pela candidatura oficial aproxima-se da soma dos percentuais de FHC e de seu governo. O saldo supera 80%.
Não procuro dizer com isso que a Folha deveria restringir sua cobertura sobre a situação econômica e as medidas que tentam revertê-la.
Pelo contrário. Esse noticiário tem mais impacto sobre a vida do leitor do que qualquer fantasia do horário eleitoral.
Mas o fato é que os números apresentados não permitem falar em equilíbrio.
O próprio conceito de cobertura neutra é difícil de sustentar. O jornal chegou a ele após separar o material nas três categorias mencionadas anteriormente. Verificou que as neutras eram maioria.
Quase sempre ficção, a notícia neutra é artigo ainda mais raro na cobertura política. Para o candidato, aparecer no jornal é por definição positivo, a menos que seja para apanhar (às vezes, até nesse caso).
Ainda que se analise a questão apenas sob o parâmetro adotado pela Folha, os números desautorizam afirmação geral sobre correspondência entre espaço e intenção de voto. A discrepância é mais evidente no caso de Ciro Gomes.
Por fim, vale a pena discutir a validade desse critério. O vício de privilegiar pesquisas como termômetro de edição acaba por fechar um círculo em que o candidato tem mais espaço porque está na frente, e continua na frente talvez por ter mais espaço.
O editor de Brasil, Fernando Canzian, reconhece que o levantamento tem limitações, mas defende sua utilização como instrumento para promover ajustes na cobertura. "Ele evita o vôo cego'', diz.
Canzian avalia que a separação entre os atos do governo e suas implicações na campanha tem sido bem resolvida na divisão entre o primeiro caderno e o especial Eleições.
Sem dúvida é positivo que o jornal examine seu noticiário e torne público o resultado. Revela disposição de acertar.
Mas o que surgiu da avaliação é mais complicado e menos positivo do que a imagem enxergada pela Folha no espelho. Deveria provocar reflexão e mudança, não autoelogio.
*
Entre os leitores que comentaram o editorial na Primeira Página de quinta-feira, houve um que me chamou especialmente a atenção. Ele criticava a Folha por não ter publicado antes, com destaque similar, aquela análise sobre a gravidade da situação econômica. Reproduzo aqui trecho de sua mensagem, por acreditar em seu valor para a Redação e para a ombudsman:
''Sou um cidadão bem informado. Leio o jornal todos os dias e acompanho o rádio. Ao longo dos últimos quatro anos, formei avaliação positiva sobre a atuação econômica do governo FHC. Afinal havia, entre erros e acertos, um saldo positivo, e era 'óbvio' que o país não dispunha de solução rápida, necessitando da reeleição para concluir reformas.
Como formei esta opinião? Lendo jornal. Acompanhando as notícias e deixando-me influenciar por especialistas. Hoje vejo um editorial na capa. Alguma coisa grave aconteceu ontem. Não senhores. Aconteceu em quatro anos.
Todo idiota tem um dia de lucidez. Hoje foi o meu. Passo a engrossar o grupo dos que colocam imprensa e políticos no mesmo saco de incredibilidade''.
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