renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Contorcionismo verbal
Nas últimas semanas, quando não estão entretidos com pesquisas eleitorais, os jornais vêm tentando antever o que o governo federal fará com a economia, e em que momento.
Quanto à primeira pergunta, a Folha, como os concorrentes, segue tateando.
Seu feito mais relevante, até agora, foi ter antecipado a intenção do governo de não apenas manter a CPMF como elevar a alíquota do imposto.
Quanto à segunda questão quando virão as medidas, o jornal se atrapalhou.
Na edição do dia 8, ao noticiar o primeiro pronunciamento do presidente da República depois de reeleito, a Folha publicou a seguinte manchete: "FHC anuncia ajuste antes dos 2º turno''.
Logo abaixo, um título de tamanho menor cravava que a divulgação aconteceria "no dia 20, antevéspera do fim da campanha''. A data passou. O pacote ainda não veio.
Em resposta, a manchete da última terça-feira reviu o prognóstico do jornal, avisando que os "detalhes'' sairiam depois das eleições. O texto lembrava que as medidas "haviam sido anunciadas'' para o dia 20, dando a entender que o presidente recuara.
Em primeiro lugar, à exceção de promessas de superávit nas contas públicas para os próximos anos, todo o pacote, e não apenas seus "detalhes'', será conhecido só depois do fechamento das urnas.
Na verdade, essa opção sempre fez mais sentido, do ponto de vista do governo, do que arriscar a sorte de aliados nos Estados com medidas impopulares antes da votação de hoje.
Em segundo lugar, basta conferir a íntegra do discurso de FHC para perceber que as coisas não são bem como a Folha pintou.
Sua primeira frase sobre o assunto foi:
"Pedi à área econômica que até dia 20 de outubro nos apresente um programa de ajuste fiscal''. O plural é claramente majestático.
Adiante, disse: "Isso (a necessidade do ajuste) não significa que, do dia para a noite, as pessoas acordem e levem um susto. Isso significa que, com esse programa, que vai ser apresentado até o dia 20, o Brasil todo vai discuti-lo''.
Com base no último trecho dessa declaração, a Secretaria de Redação contestou minha crítica interna sobre o episódio. Entende que, para que o país pudesse debater as medidas, elas teriam de ser mostradas não apenas ao presidente.
De fato, há uma dose de ambiguidade na sentença e FHC, mas não houve comprometimento com um anúncio ao público na referida data.
À primeira vista, a análise desse discurso e do uso que a Folha fez dele nas duas manchetes pode parecer detalhe.
Afinal, mais importante do que acertar a data da divulgação será oferecer ao leitor interpretação de qualidade sobre o alcance das diversas medidas _as quais, tudo indica, devem sair nesta semana.
Mas o episódio é interessante por exemplificar bem a liberdade excessiva com que o jornal trata as palavras dos outros sempre que é necessário justificar as suas.
A Folha fez uma previsão (pacote antes do segundo turno) e estreitou sua "margem de erro'' ao fixar a data. Não deu certo.
A falha em si não me parece grave, até porque é possível agarrar-se à construção confusa da frase do presidente.
No entanto, se usa essa ambiguidade em sua defesa, o jornal não pode em seguida descartá-la e decretar, para livrar a cara de uma manchete que se revelou furada, que FHC mudou de idéia.
A edição da última quinta-feira ofereceu outro exemplo de contorcionismo com o discurso alheio.
"Covas já fala em ganhar de goleada'', afirmava a reportagem em que o candidato comentava o resultado da pesquisa Datafolha apontando sua virada sobre Paulo Maluf.
Agora confira a declaração do tucano:
"Não basta ganhar. É preciso que a gente ganhe de goleada''.
Fica claro que não é a mesma coisa.
A frase de Covas é um pedido de votos. A do jornal tem um tom de "já ganhou'' inexistente no original.
Nem mesmo boas reportagens não estão imunes ao vício de dar anabolizante às palavras.
No domingo passado, o repórter Daniel Castro marcou um gol ao revelar, no TV Folha, o esquema de contratação de pobres coitados para "interpretar'' dramas forjados no programa de Ratinho.
Na edição de quarta-feira, a primeira repercussão da história veio com o título: "Ministério Público sugere cassação do SBT''.
Ministério Público, no caso, vem a ser um promotor que está se tornando conhecido por sua cruzada contra o apresentador.
No texto, Clilton Guimarães dos Santos dizia que as medidas contra a emissora poderiam ser "multa e até a revisão da concessão''.
Como é muito improvável que esse cenário extremo se concretize, o jornal poderia ter poupado o leitor do sensacionalismo do título. O enunciado procura inflar artificialmente um caso que não precisa disso.
No calendário do pacote, o contorcionismo verbal foi usado para sustentar uma interpretação possível, mas bastante particular do jornal.
Na goleada de Covas, houve distorção pura e simples.
As ameaças do promotor à emissora que exibe as farsas de Ratinho foram tomadas além de seu verdadeiro peso.
Os três casos têm em comum a falta de apego à exatidão, sem a qual o jornal compromete sua credibilidade.
*
Na semana que passou, as pesquisas eleitorais permaneceram no topo da lista de assuntos que levaram o leitor a procurar a ombudsman.
Com tudo o que aconteceu em São Paulo a virada, o escorregão do Ibope, o debate da noite de sexta-feira, achei mais prudente esperar pela apuração dos votos para voltar ao tema.
*
Gostaria de estar enganada, mas tudo indica que o caso do hotel do ministro das Comunicações será sepultado tal como previsto aqui há uma semana: a Folha acusou, Luiz Carlos Mendonça de Barros desmentiu, e o leitor não saberá quem tem razão. Ficou tudo por isso mesmo.
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