renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Revirando o baú
A que passou foi uma semana de efemérides de algum modo relacionadas: os 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos e os 30 do Ato Institucional nº 5, que pôs o Congresso em recesso, cassou políticos, censurou a imprensa e suspendeu garantias constitucionais, tornando-se um divisor de águas no período de governos militares da história brasileira recente.
A primeira data recebeu o tratamento que se podia imaginar. Em resumo, radiografias variadas da situação, no país e no mundo, dos princípios arrolados na carta das Nações Unidas.
Com a segunda data aconteceu algo semelhante ao que havia se verificado no caso do grampo telefônico no BNDES. "Veja" e "Época" protagonizaram a cobertura.
Os demais veículos impressos se dividiram entre um grupo que ignorou o assunto e outro que produziu reportagens inferiores às apresentadas pelas duas revistas.
Elas seguiram caminhos diferentes. "Veja" tomou o aniversário do AI-5 apenas como "gancho", para usar o jargão dos jornalistas.
Seu feito foi ter arrancado de um ex-tenente do Exército o primeiro relato público de um agente da ditadura assumindo, sem meias palavras nem economia de detalhes, as torturas que praticou.
A entrevista, como observei na crítica interna de segunda- feira, é daquelas que não se consegue abandonar no meio e continuam a causar impressão muito depois de encerrada a leitura.
"Época" fez outro tipo de coisa. Pegou as gravações da reunião do Conselho de Segurança Nacional que decidiu a promulgação do AI- 5 e praticamente esgotou as possibilidades oferecidas pelo material.
Mostrou o voto de cada ministro nas anotações manuscritas do presidente Costa e Silva, reproduziu trechos generosos dos pareceres mais importantes, colheu depoimentos de personagens centrais e periféricos.
Sua reportagem é um antifuro, na definição que me foi dada por um colega. As gravações não eram segredo. Estavam à disposição de quem quisesse se debruçar sobre elas.
O comentário nada tem de depreciativo. Em primeiro lugar porque não me incluo entre os que torcem o nariz, por definição, para efemérides.
Quando são associados tema relevante e tratamento sofisticado, o leitor tem muito a ganhar com esse gênero de informação. É um serviço de qualidade que lhe prestam.
Em segundo lugar porque a edição de "Época" foi primorosa, colocando várias voltas de vantagem sobre as que Folha e "O Globo" fizeram a respeito das mesmas gravações.
O quadro descrito acima dá margem a algumas observações:
1) Bem-vindo, leitor, ao mundo cada vez mais competitivo das edições de fim-de-semana. É a sua atenção que está sendo disputada.
Muito se tem falado sobre os efeitos negativos da hiperconcorrência no jornalismo, mas talvez esteja na hora de notar os positivos.
Não é outra a explicação para o apetite que vem sendo demonstrado pela revista líder de mercado e pela que chegou, há sete meses, para tentar roubar- lhe o sono.
Competição pode ser igual a Ratinho x Leão, mas também pode significar confissões de um torturador x como nasceu o AI- 5. No segundo caso, não vejo do que reclamar.
A bola está com os jornais. O embate, ainda que em outro segmento, deveria lhes servir de estímulo, mesmo porque o leitor cortejado é, em boa parcela, o mesmo, e portanto habilitado a fazer comparações.
2) Demorou, mas a mídia impressa brasileira começa a usar a Internet de forma inteligente. "Época" tem razão quando afirma ser responsável por inovações nessa área.
No episódio da escuta telefônica, tornou disponível em seu site uma quantidade de conversas sobre a privatização da Telebrás que jamais poderia ter sido acomodada nas páginas da revista, onde foram editados apenas os trechos mais significativos.
Fez o mesmo agora com a memória do período militar. Colocou na rede os pareceres completos dos ministros e trechos do áudio da reunião.
Essa visão complementar dos dois meios vai além da simples reprodução de conteúdo impresso que ainda é regra nos sites de publicações do país.
Motivos para investir nesse casamento não faltam. No caso da Folha, por exemplo, o número mais recente, do ano passado, dava conta de que 24% de seus leitores estavam conectados à rede. Dado o ritmo de expansão da Internet, faz sentido supor que esse percentual já tenha sido superado.
3) Com tanta gente atrás das mesmas histórias, seria bom redobrar os cuidados antes de carimbar sobre elas o selo "exclusivo", ainda que em suas formas eufemísticas ("o jornal X traz", "a revista Y mostra").
Foi o que aconteceu com as gravações da reunião do AI-5. O leitor percebe o engodo e os vendedores da alegada exclusividade acabam constrangidos.
4) A natureza do furo de "Veja" vale um comentário. Não parece ter sido fruto de manobras extraordinárias, mas sim, pelo que se conclui do material publicado, de um misto de vontade de fazer e persistência.
A revista foi aos relatos do livro "Brasil: Nunca Mais" para chegar aos nomes dos torturadores mais citados pelos presos políticos.
Localizou alguns que falaram um tanto. De um deles, o campeão da lista, conseguiu obter o serviço completo.
O diálogo final entre repórter e entrevistado merece transcrição:
- Por que o senhor só resolveu dar esse depoimento agora?
- Porque ninguém me havia perguntado sobre isso antes.'
É conversa que dá o que pensar.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade