renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Peguem o padre
Não é de hoje que leitores me procuram para falar do que sai na Folha sobre o padre Marcelo.
Invariavelmente para falar mal. Não raro para soltar os cachorros.
Seja pela demanda, seja pela visibilidade que a "aeróbica do Senhor" alcançou, eu sabia que cedo ou tarde teria de escrever sobre o assunto.
Não havia me animado antes porque, em sua maioria, as cartas etelefonemas davam pouca margem a discussão jornalística.
Eram protestos contra o articulista X por "ferir a dignidade de um homem que só faz o bem", ou contra o colunista Y por "brincar com a fé dos outros".
Uma leitora, a propósito de reportagem na Revista da Folha sobre o sucesso do padre junto ao público feminino, recorreu aos Salmos para mostrar seu descontentamento. Censurou os que "atentam contra a alma do justo e condenam o sangue inocente".
Por mais que respeite as convicções de cada um, pouco me resta, diante desse gênero de manifestação, além de ouvir, relatar à Redação e buscar um entendimento com o leitor.
A terceira tarefa é ingrata. Não é fácil explicar a alguém que protesta movido por sua crença que a ombudsman deve zelar pela isenção e equilíbrio do material publicado, mas que:
a) existem pontos de vista diferentes daquele manifestado pelo leitor, e igualmente legítimos;
b) no espaço que o jornal reserva à opinião, esta é livre. A regra não vale menos para sacerdotes do que para outros personagens do noticiário.
Assim andavam as coisas quando a Folha trouxe, no domingo passado, o resultado de suas investigações a respeito dos negócios em torno do "fenômeno" Marcelo Rossi.
Ao mesmo tempo que a revista "Isto É", o jornal revelou que o padre tem registrada, em sociedade com sua mãe, uma empresa destinada à produção e comercialização de artigos da marca Terço Bizantino.
Junto com a notícia, a reportagem relacionava os números grandiosos que cercam o religioso: sua altura (1m94), a área do Santuário do Templo Bizantino (8.000 metros quadrados), o público nas missas (várias estimativas na casa das dezenas de milhares), a vendagem recorde de seu CD (2,7 milhões de cópias) e por aí afora.
Quase nada que já não tivesse saído na imprensa, dada a superexposição da estrela maior do movimento católico da Renovação Carismática. Mas compreendo que o painel era necessário para situar o leitor.
Completavam a página dedicada ao assunto um quadro com produtos vendidos no santuário e seus respectivos preços e uma entrevista feita por fax com padre Marcelo.
Em resumo, ele dizia que:
a) a empresa foi criada para assegurar os direitos da marca Terço Bizantino;
b) a empresa está inativa;
c) o dinheiro arrecadado com os produtos à venda no santuário é destinado a obras da igreja;
d) seu superior, o bispo de Santo Amaro, tem conhecimento de seus atos.
E assim acabava a história.
Na segunda-feira, os leitores mudaram de tom. Pela primeira vez, discutiam mais jornalismo do que religião.
Um deles criticou a Folha por ter dado à descoberta da empresa "tratamento semelhante ao dos grandes escândalos".
Reproduzo a seguir trechos da carta, porque ela resume bem outros questionamentos que recebi.
"Fui ler a notícia e não vi nada de errado. Me parece que haveria erro se o padre estivesse ganhando dinheiro para si ou para o bispo. Mas o jornal não conseguiu mostrar isso."
"Então, ficou faltando dizer se é errado criar uma empresa para ganhar dinheiro com o sucesso do padre."
"Um caminho seria mostrar como funcionam as outras empresas ligadas à igreja e que produzem bíblias, CDs de música sacra, imagens e livros. Elas sempre pertencem à Cúria?
Comparadas a essas, existe alguma coisa que desabone a empresa do padre Marcelo?"
"Talvez tenha faltado levantar essas outras informações para permitir ao leitor fazer um julgamento melhor sobre o fato."
Quero deixar claro que nada tenho contra a disposição da Folha para investigar os negócios do padre Marcelo ou de qualquer figura pública.
Nem é este um episódio em que a ombudsman aponta injustiça cometida pelo jornal. Do ponto de vista técnico, não há deslize na reportagem de domingo passado. O texto cuidou de não avançar o sinal na caracterização de irregularidades. A edição destacou as explicações do padre.
Ainda assim, o que o leitor diz faz todo o sentido. Se há algo errado na administração do santuário, a Folha precisará de novos capítulos para mostrar o que é.
Não foi caso de muito barulho por nada, dada a atenção que o personagem envolvido vem despertando, mas também é certo que as conclusões apresentadas desautorizavam o tom de denúncia que revestiu o material.
Às vezes acho que o jornal se aproxima de todo e qualquer assunto como se estivesse cobrindo fraude em licitações públicas.
Quem acompanha a Folha sabe que esse tipo de investigação já rendeu frutos importantes ao jornal. Pode muito bem render outros.
Mas é insuficiente para dar conta de histórias como a do padre Marcelo, a composição do público que ele atrai, o incômodo que vem causando na hierarquia católica e nas igrejas concorrentes.
Se a abordagem "aí tem coisa" não vier associada ao aprofundamento interpretativo que o projeto editorial defende, o jornal corre o risco de nem sequer distinguir o que é novidade do que não é.
Foi o que aconteceu, por exemplo, na descrição de que "antes, durante e depois das quatro missas semanais, quatro barracas localizadas dentro do santuário vendem uma série de produtos". Como se esse comércio fosse inovação do padre Marcelo.
Ou, pior, no carnaval feito desde a foto da Primeira Página com a suposta associação entre o padre e uma marca de refrigerante. Ele aparecia "à frente de barraca que indica a venda", junto ao santuário, "de produtos da Coca-Cola".
Difícil descobrir onde está a irregularidade ou compreender o motivo do espanto. Deve fazer tempo que o jornal não vai a Aparecida do Norte.
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