renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Longe de tudo
Como boa parte dos paulistanos, tenho uma história sobre a segunda-feira passada.
Não foi nada perto dos barracos soterrados no Jardim Miriam, do horror no túnel do Anhangabaú, das pessoas que não puderam voltar para casa e das que foram assaltadas no trânsito parado sob o Minhocão.
Apenas tive minha cota de tempo perdido no engarrafamento, cerca de duas horas para vencer um trajeto normalmente percorrido em 15 minutos
Ouvindo rádio e, mais tarde, vendo TV, pude constatar que meu transtorno havia sido irrisório em vista da calamidade geral.
Na manhã seguinte, o texto principal da capa da Folha resumia o colapso da cidade assim: "São Paulo viveu ontem mais um dia de caos provocado pela chuva".
Não estava errado. Mas também não estava certo. A segunda-feira não foi só mais um dia de caos. Ela alcançou um grau além disso na escala de traumas que vêm testando a resistência da população. A cobertura do jornal não era propriamente ruim.
Na comparação com os outros diários, trazia o relato mais abrangente dos estragos causados pelas duas horas de temporal.
Tinha o defeito de registrar exclusivamente a versão da prefeitura sobre as causas das enchentes, em vez de cotejá-la com as de outros técnicos (o problema está de tal maneira incorporado à vida da cidade que, a esta altura, a Folha já deveria ter ouvido especialistas em número suficiente para saber de cor o que descartar do discurso oficial).
Mas a idéia de que a segunda-feira foi, afinal de contas, mais um dia de caos é sintoma de outro tipo de deficiência.
Qualquer leitor que tenha passado pelo sufoco na rua ou acompanhado as imagens nos telejornais da noite podia notar que a edição de terça-feira estava aquém do drama vivido pelos paulistanos.
Não é coisa que se resolva com adjetivos. Exige, da parte dos jornalistas, uma percepção mais apurada do que está acontecendo com a cidade e da insatisfação crescente de seus habitantes.
"A Folha esqueceu São Paulo", escreveu um leitor à ombudsman no dia seguinte ao dilúvio.
Ele acusava o jornal de sofrer de "fixação" pelo noticiário da capital federal, lembrando que cidadania, como diz o nome, "se vive antes de tudo na cidade da gente, não em Brasília".
"Nós, paulistanos, queremos mais informação, mais investigação AQUI", continuava o leitor, "antes que a cidade afunde de uma vez".
Mesmo levando em conta os compromissos da Folha com sua irradiação nacional, o protesto do leitor faz todo o sentido.
Como tantas pessoas com quem conversei ao longo da semana, ele associava, em suas observações, a enchente e a rede de propinas que envolve funcionários da prefeitura e chega cada vez mais perto da Câmara Municipal.
São depoimentos que refletem um clima de indignação bem captado por esta manchete do "Jornal da Tarde", estampada junto a fotos do Anhangabaú alagado: "Está assim a cidade da máfia dos fiscais".
Olhando em torno, tenho a impressão de que o descontentamento do leitor com esse estado de coisas está alguns tons acima do adotado pela Folha.
Não sugiro que, para entrar em sintonia com seu público, o jornal abdique dos princípios que devem nortear seu trabalho, passando a acusar sem provas e a satanizar personagens.
Basta que dê a esses assuntos a prioridade que merecem, apresentando o que o leitor pediu à ombudsman: resultado de investigação jornalística.
Porque, até agora, da chuva pouco se disse além de que ela matou, alagou e parou o trânsito. Quanto ao escândalo dos fiscais, ele vem praticamente caindo no colo do jornal. Está na hora de mostrar serviço.
*
Se alguém duvida de que o jornal anda com dificuldade para reconhecer o que mobiliza o leitor, é só reparar como passou batido pela vira-lata Catita, tornada heroína nacional depois de salvar a vida de duas crianças atacadas por um pit bull. Exceto por uma foto escondida no caderno infantil, essa história sensacional a vingança do oprimido contra o mauricinho, como definiu José Simão não foi contada na Folha. Até ontem, só havia sido registrada nos comentários de seus colunistas.
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