renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Imagens para chorar
Duas crianças de semblante triste.
Mariana, 11, exibe caranguejos apanhados no manguezal em Guapimirim (RJ). Ela e outros de sua idade vivem de vender os bichos.
O menino sem-terra (nome e idade não fornecidos) entrega ao policial militar, membro do Batalhão de Choque enfileirado, um pacote de macarrão. A comida fora obtida em saque do MST a três caminhões, perto de Porto Feliz (SP).
Duas imagens de primeira página. Dois retratos brasileiros que, com uma "mãozinha" da Folha, tiveram sua carga dramática aumentada.
Quando dei com a menina na capa de domingo passado, pensei que precisava de boa explicação para não concluir que se tratava de foto armada.
A lama que sujava seu rosto mais parecia pintura, tão definidos eram os contornos. A boca e a região dos olhos estavam geometricamente preservadas. Cabelo e pescoço, intactos. A camiseta, quase.
Entre segunda e terça-feira, seis leitores me procuraram com a mesma desconfiança.
"Sem desconsiderar a situação das crianças que têm de trabalhar em local insalubre, que merece a atenção de todos nós, noto que a foto foi preparada para causar maior impacto, o que é eticamente incorreto", escreveu um deles.
"A Folha não precisa exagerar a realidade", disse outro. "Sabemos como ela é cruel."
A imagem do menino, publicada em 29 de maio, igualmente no alto da capa, havia despertado reação similar em dois leitores.
Um deles desafiou o jornal a mostrar outras fotos da mesma sequência, para "provar que a devolução de alimentos aos policiais realmente foi feita da forma piegas que quiseram nos fazer acreditar".
A Redação sustenta que as cenas não foram montadas.
É investigação que costuma terminar em beco sem saída. Fica a palavra do autor contra o ceticismo de quem olha a imagem e não se convence de sua espontaneidade.
Ainda que se tome o esclarecimento como verdadeiro, a Folha não escapa da acusação de ter manipulado, com ou sem intenção, a informação contida nas fotos.
Se não o fez de maneira explícita, orientando a caracterização da menina ou o gesto do menino, chegou a resultado semelhante contando apenas parte das histórias.
Nos dois casos, o jornal reconhece ter omitido elementos importantes para a compreensão do contexto em que foram feitas as imagens.
Em resposta às suspeitas de leitores e da ombudsman, a fotógrafa Patricia Santos conta que, quando chegou ao manguezal, encontrou Mariana com o rosto pintado.
A máscara de lama, segundo Santos, havia sido feita pela menina para se proteger dos mosquitos. A explicação saiu terça-feira no "Painel do Leitor", junto a um protesto.
Por que não constava do texto que acompanhou a foto de domingo? O dado não foi transmitido à Redação porque, de início, a fotógrafa não o considerou relevante. Ela reconhece que estava errada.
A única chance de essa foto ser levada a sério reside no esclarecimento de que "maquiagem" houve; apenas o jornal afirma que não foi feita por ele, sendo prática das crianças que trabalham ali.
Na sexta-feira, um leitor me procurou para dizer que não ficou satisfeito com a nota na página 3. Para ele, a história permanece mal contada.
Embora menos flagrante, o problema com a foto do menino sem-terra é mais grave. Nesse caso, o que deixou de ser contado muda radicalmente o significado da imagem.
Não partiu do garoto a iniciativa de se aproximar da "muralha" do Batalhão de Choque. Antes dele, outras tantas crianças já haviam depositado alimentos junto aos soldados, orientadas pelos adultos do MST. Foi essa a estratégia escolhida, pela coordenação do movimento, para obedecer ao mandado judicial que determinou a apreensão do produto do saque.
O episódio é mais sério também porque, dessa vez, a Redação tinha conhecimento da informação que acabou ausente tanto da capa quanto da reportagem interna.
Por que algo dessa relevância foi omitido? Falha de edição, de acordo com o relatório que me foi encaminhado.
Na quarta-feira, a Folha trouxe carta do comandante do Policiamento de Choque. Ele convidava o jornal a mostrar o momento anterior da cena, em que uma mulher segura o menino pelo braço e o força a levar o pacote ao PM.
A edição não recebeu essa imagem, mas ela chegou a ser feita. O fotógrafo Frâncio Hollanda afirma que optou por enviar a que mostrava apenas a criança e o soldado, "por ser a de melhor qualidade técnica e plasticidade".
Esqueceu de dizer que é também a mais favorável ao MST.
As imagens da menina no manguezal e do menino no assentamento tratam de feridas sociais verdadeiras, que, como diz o leitor, merecem toda a atenção.
O que está em discussão é o compromisso de reunir as informações necessárias para contar a história por inteiro, ainda que o resultado seja menos emocionante.
Não por acaso, as imagens em questão são de crianças. Do fotógrafo ao editor, os envolvidos no trabalho jornalístico sabem que o recurso faz sucesso. É o que um colega chamou, em discussão recente comigo, de efeito "A Vida É Bela".
O problema é que, usado na base do piloto automático, ele faz com que o jornal seja menos rigoroso do que deveria na hora de fazer perguntas sobre as fotos que pretende publicar.
A esse respeito, um leitor indagou se "ninguém, em todos os estágios que uma notícia enfrenta até chegar ao papel, percebeu" que havia algo estranho com a foto da catadora de caranguejos.
A questão remete a outro problema: o desleixo histórico com que são feitas as legendas na Folha.
O "Manual da Redação" diz que elas merecem "tanto cuidado quanto os títulos". Devem "salientar todo aspecto relevante e dar informação adicional sobre o contexto em que a foto foi tirada".
Foi o que o jornal ficou devendo nas duas fotos analisadas.
Como regra, as legendas da Folha obedecem ao princípio que o "Manual" condena: "simplesmente descrever aquilo que qualquer leitor pode ver por si só". O presidente cumprimenta, o fiscal depõe, o jogador chuta e a modelo desfila. Não adianta esperar mais do que isso.
*
No domingo passado, Mundo publicou artigo do jornalista e escritor Renato Pompeu intitulado "Guerra acaba exatamente onde começou".
Em contraste com boa parte das análises sobre o fim dos ataques da Otan à Iugoslávia, ele defendia a idéia de que não houve propriamente capitulação de Slobodan Milosevic, pois "os bombardeios conseguiram 'arrancar' da Sérvia o que ela havia proposto" nas negociações que precederam a ofensiva militar.
A edição colocou sobre o texto a rubrica "Visão pró-sérvia", o que deixou Pompeu enfurecido.
"Não sou pró-sérvio e acho que a questão tem de ser resolvida no âmbito da ONU", escreveu ele em carta que o jornal registrou na terça-feira.
Um leitor concordou com o protesto: "Acabei de concluir que a cobertura da Folha sobre a guerra por Kosovo apresenta visão pró-Otan".
"Cheguei a essa conclusão depois de ler e reler o referido artigo sem entender por que o mesmo foi considerado 'visão pró-Sérvia'."
"Gostaria de ver a Folha, nesse e em outros assuntos, com uma visão mais, digamos, pró-leitor."
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