renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Tudo suposto
Se um dia for feito levantamento de termos recorrentes no noticiário, "suposto" terá lugar de destaque no ranking. Calculo que perca apenas para um punhado de adversários imbatíveis, como os verbos de ação mais comuns e os declarativos "disse", "afirmou" e "negou".
Esse adjetivo não é o único recurso oferecido pelo idioma para tomar uma informação com reserva, mas é certamente o mais usado pela Folha.
Seus textos estão repletos de "suposto" (a, os, as). Recentemente, observei na crítica interna que havia encontrado dois em uma única frase curta. Não duvidarei se um leitor me disser que encontrou três.
Tempos atrás, um amigo contou ter retirado de uma história, no gargalo do fechamento, a referência aos "supostos" tiros de que fora vítima o personagem da notícia. Repórter e fotógrafo haviam constatado pessoalmente os ferimentos.
Anedotas e insuficiência vocabular à parte, é saudável a preocupação de tratar com distanciamento o que não está estabelecido, seja qual for a fonte da informação.
A Folha bate os concorrentes na incidência de "suposto" e de futuro do pretérito porque, a despeito da frequência com que cai na conversa dos outros, em especial na do governo, ainda é o jornal que mais desconfia do que lhe dizem.
O problema, como tantas vezes, é a falta de critério. A professora de português Priscila Figueiredo, que orienta a Redação, nota que o uso indiscriminado faz dessa ferramenta uma muleta. "Não fica claro o que é hipótese e o que é fato."
A confusão não é apenas formal. Compromete a coerência. Na quinta-feira, uma das reportagens que apresentavam o protesto em Brasília dizia que "as entidades baseiam seu pedido" de abertura de processo de impeachment contra o presidente "na suposta interferência de FHC em favor de um dos grupos que participaram do leilão da Telebrás".
Quando divulgou as conversas do grampo do BNDES, em maio passado, a Folha concluiu em manchete que o presidente "tomou partido de um dos grupos" na venda das teles.
Independentemente do juízo que se faça do pedido das entidades, o "suposta" está sobrando, pelo menos se o jornal acredita no que publicou antes.
"Quem acompanhou o assunto acha estranho", diz a professora. "Percebe que falta coesão ao noticiário."
Não pretendo exagerar o alcance deste exemplo. O lapso ocorreu em um texto periférico. No dia seguinte, ao relatar a entrega do documento das oposições ao presidente da Câmara, o jornal se referiu aos diálogos do grampo como originalmente havia feito.
Mas o ruído demonstra que os próprios jornalistas se confundem na hora de separar o que pode ser assumido como fato e o que deve ser apresentado como suspeita.
Às vezes o "suposto", em vez de sobrar, falta. Na mesma edição, ao lado do primeiro exemplo, era esta a abertura de um outro texto: "José Dirceu, presidente do PT, denunciou ontem um esquema para tentar impedir ou atrasar a chegada dos ônibus com manifestantes" à capital federal.
Se a Folha estava convencida da existência do referido esquema, tinha de oferecer elementos que justificassem a afirmação. Como não o fez, deveria ter guardado distância do que disse o dirigente petista.
Não são todos os jornais que se preocupam com esse tipo de diferenciação. Mas ela está expressa no "Manual" da Folha e não deveria ser esquecida pela Redação, porque está longe de ser apenas sutileza de escrita.
Por fim, há histórias que são uma pilha de "supostos". As ressalvas são tantas que o leitor começa a procurar, no meio delas, um item que seja de concreto. Não acha nada. Descobre que lhe venderam, disfarçada, uma suposta notícia.Corresponde a esse perfil a inclusão do jogador Ronaldo no caso das investigações, conduzidas pela polícia italiana, em torno de uma brasileira suspeita de envolvimento com prostituição e comércio de drogas em Milão.
A Folha não foi o veículo que mais se entusiasmou com o "escândalo", mas gastou sua quota de papel e um enviado especial com reportagens que informavam, em resumo, o seguinte: o atacante da seleção brasileira estaria entre os supostos clientes da mulher; haveria fotos dos dois juntos; ela teria o número de telefone de Ronaldo.
Quando há suposições demais, é grande a chance de que a história não pare em pé.
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