renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Em outro planeta
Há tempos a Folha não levava um tombo como o que levou no episódio da saída de Clóvis Carvalho do Ministério do Desenvolvimento.
A semana quebrada pelo feriado pode ter diminuído a repercussão do desastre, mas quem acompanhou o noticiário nesses dias, e teve a oportunidade de comparar diferentes veículos, sabe do que estou falando.
Na máfia da propina, o jornal demorou a se dar conta de um assunto que vinha crescendo. No ataque à Iugoslávia, as primeiras edições pecaram por superficialismo e excessiva identificação com a posição dos EUA no conflito.
Desta vez o problema foi de outra natureza. Não é que a Folha tenha jogado mal. Simplesmente não compareceu à partida.
Clóvis Carvalho foi despachado do governo entre o final da noite de sexta-feira, dia 3, e o início da madrugada de sábado.
Passara o dia subindo no telhado, como diz a piada antiga. Na véspera, havia chamado de covarde, ainda que de forma indireta, seu colega da Fazenda, Pedro Malan.
O discurso, feito com Malan ao lado durante um seminário, criticava a "ênfase monocórdia na contenção de gastos", e dizia que é preciso "arriscar mais, até o limite da responsabilidade", no estímulo ao crescimento econômico. Não fazer isso seria "outro nome para covardia".
Dos quatro diários de irradiação nacional, "O Globo" foi o único a saber da demissão a tempo de incluí-la em todos os seus exemplares. Trouxe pacote completo: fato, bastidor, análise e editorial.
A Folha tomou conhecimento do que se passava por telejornais. Sua sucursal em Brasília somente confirmou a notícia por volta de 1h, quando o ministro já havia se apresentado ao presidente no Palácio da Alvorada. Conseguiu colocá-la apenas em parte da tiragem paulistana.
"Estado" e "Jornal do Brasil" também recorreram a trocas. Suas edições, no entanto, revelavam mais sintonia com o que estava em curso. Um editorial aqui, um colunista ali, a queda era pelo menos tratada como possibilidade.
Na Folha havia apenas o registro tardio, impreciso em suas poucas informações. De acordo com a manchete, o jornal havia apurado que o ministro pedira demissão. Como hoje é sabido, deu-se o contrário.
Em torno da reportagem, os textos caducos deixavam claro que o jornal dera como certo que nada de grave ocorreria com Carvalho, seja por confiança na hipótese "FHC sabia", seja por convicção de que no atual governo não há limites para o pugilato em público.
O único artigo a comentar o incidente no seminário decretava o fim do tempo político de Pedro Malan.
Até aí, por mais desagradável que seja para um jornal estar em um lugar enquanto a notícia está em outro, são coisas que acontecem. A Folha já se viu na situação oposta: ela com a informação, os concorrentes procurando rumo.
Perdido o sábado, havia o domingo para recuperar o furo e explicar as origens e implicações da decisão do presidente. A muitos leitores isso interessa mais do que saber quem obteve a notícia em primeira mão.
Qualquer que tenha sido o planejamento anterior de "Globo" e "Estado" para esse dia, ambos o alteraram para dar amplo espaço ao noticiário de Brasília. Tinham reconstituição dos eventos, repercussão e artigos correlatos.
A Folha reunia todas as condições para fazer o mesmo, mas decidiu radicalizar. Se no sábado estava distante do fato, no domingo estava em outro planeta.
Com o assunto quente e o leitor à espera de esclarecimentos, optou por deixar na manchete uma reportagem sobre adoção de crianças. Nada contra ela. Em circunstâncias diferentes, ficaria bem ali.
Mas jornal não é revista, ainda que aos domingos esteja cada vez mais parecido com uma. Quando a notícia se impõe, não adianta brigar com ela.
A chamada secundária na capa remetia para uma cobertura mirrada. Em ritmo de feriado, a reportagem não apurava praticamente nada do muito que ficara devendo na véspera.
Habitualmente pródiga em análises, a Folha trazia um único comentário escrito depois da demissão do ministro.
Não é inédito ver o inesperado ficar sem lugar na edição de domingo, quase toda concluída até a noite de sexta-feira.
Mas desta vez foi gritante a diferença de temperatura entre o que estava pronto e o que o deixou de ser feito _com frequência, leitores têm me procurado para reclamar de discrepâncias desse gênero.
Não é problema planejar o cardápio do final de semana. Pelo contrário, desde que exista disposição para quebrar o gesso e mudar tudo quando necessário.
A situação melhorou na segunda-feira. Ainda faltavam bastidores e interpretação, mas pelo menos a Folha tinha voltado à Terra. Oferecia mais ou menos as mesmas informações disponíveis em outros lugares.
Melhorou mais na terça, mas então as histórias já eram outras: o novo ministro e a expectativa da reunião em que o presidente determinou, de novo, o fim dos desentendimentos declarados na equipe. Página virada.
Será uma pena se a Folha, em vez de aprender com o tombo e usá-lo como exemplo a não ser repetido, buscar consolo ilusório em teorias do tipo "não tinha tanta importância" e "os outros é que exageraram".
Será uma pena porque:
a) não é verdade;
b) a questão principal não é Clóvis Carvalho, o Ministério do Desenvolvimento ou mesmo saber se Pedro Malan sobreviverá à próxima investida de políticos e jornalistas que pedem sua cabeça.
Para a Folha, agora, o ponto é descobrir por que tantos dormiram tanto diante da notícia. Não foi cochilo de uma pessoa, mas sono profundo que atingiu o jornal como um todo.
Nada envenena mais um diário do que partir do pressuposto de que as coisas não vão acontecer.
*
Nesta semana, atenderei os leitores apenas amanhã. Na terça-feira viajo para San José, Costa Rica, para participar de seminário que reunirá ouvidores de imprensa da América Latina.
Durante minha ausência, Rosângela, secretária do Departamento de Ombudsman, levará à direção do jornal os casos que necessitem de providências urgentes. Todas as mensagens serão respondidas por mim a partir do dia 20.
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