renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Tendências sem debate
Não basta contar uma boa história. Nem reunir algumas e sugerir que determinada prática possa estar se tornando mais frequente.
Nas chamadas reportagens de comportamento, o jornal não faz por menos: quer provar que descobriu um novo fenômeno sociocultural.
Em princípio, nenhum problema. Identificá-los, de preferência antes do leitor, é mesmo uma de suas tarefas. A encrenca começa quando não há elementos para demonstrar a tese. Em vez de substituí-la por uma abordagem mais modesta, o jornal apela. De afirmações a cálculos de última hora, vale tudo para dar ao relato aparência de rigor científico.
No domingo passado, um dos destaques da capa da Folha era uma bonita montagem de fotos de futebol soçaite. As imagens mostravam contusões e lances em que os jogadores estavam prestes a sofrê-las. O painel remetia para uma reportagem sobre os riscos oferecidos pela prática do esporte.
Boa idéia para a seção "Saúde", que nem sempre é tão inventiva na escolha de seus temas. Quase todo mundo conhece alguém que já arrebentou joelho ou tornozelo em partidas nas quais boleiros de fim-de-semana misturam excesso de ímpeto com escassez de preparo físico.
São várias as possibilidades em uma página de serviço: apontar as lesões mais comuns, mostrar que o revestimento precário das quadras eleva os riscos, explicar por que o exercício eventual e sem orientação, especialmente depois de certa idade, é ainda mais perigoso do que a inatividade.
Tudo isso, vale registrar, a Folha fez. Teria bastado para atrair atenção. Não deve ser pequeno o número de praticantes e de seus familiares entre os leitores.
Mas, para esquentar o material, foi criada a teoria do soçaite assassino (ainda que a reportagem não tenha esclarecido se ele machuca mais ou menos do que futebol de rua, de várzea ou de praia).
A chamada de capa anunciava que a modalidade "tem onda" de contusões. Toda vez que encontrar essa expressão em título, pode desconfiar. Ela indica que o redator teve de sair pela tangente, porque não havia nada de concreto a dizer.
Menos constrangido que o da Primeira Página, o enunciado interno cravava: "Futebol soçaite faz mil 'vítimas' por dia".
Era o resultado da multiplicação do número aproximado de quadras para locação em São Paulo pela "estimativa conservadora" de uma baixa por dia em cada uma delas.
Ou seja, puro chute. Pode ser mais. Pode ser menos. O jornal simplesmente não sabe. Fabricou um número na tentativa de impressionar o leitor.
Na mesma edição de domingo, também era chute o diagnóstico da Revista da Folha de que "a indústria do turismo vive um surto sem precedentes na busca por fortes emoções".
A reportagem de capa narrava histórias saborosas de pessoas que, na hora de viajar, preferem o deserto da Argélia a Paris e as montanhas do Afeganistão a Nova York.
Como nas contusões do futebol soçaite, o problema é que o jornal, não satisfeito em contar os casos e deles inferir uma possível recorrência, quis logo apresentar sua descoberta como novo padrão de conduta. A reportagem carecia de qualquer dado, numérico ou não, que sustentasse generalizações.
Comparados a outros ilusionismos promovidos pelo jornal, os dois relatados acima são relativamente inofensivos.
Não faz tanta diferença definir se há ou não "grandes chances de trombar com um ex-colega de classe no lago Titicaca", ou estabelecer o número exato de vítimas dos chutes no piso sintético.
Os exemplos importam mais pelo que revelam da fórmula utilizada pelo jornal para produzir notícia.
Uma hipótese. Três ou quatro personagens que a endossem. Um "especialista" para dar opinião favorável.
Distância de qualquer um que a refute. Está criada uma nova tendência, sem debate nem consistência.
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