renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
A convite de
A convite de um laboratório farmacêutico, um jornalista da Folha acompanhou, ao longo da semana passada, uma conferência internacional sobre Aids realizada em Lisboa.
Como determina o "Manual da Redação", as reportagens produzidas no evento esclareceram, no pé do texto, quem pagou as despesas da viagem.
Pretendo mostrar que essa providência, embora saudável, é insuficiente para eliminar o conflito potencial de interesses que resulta do patrocínio.
Publicado na segunda-feira, o primeiro texto enviado da conferência informava que uma portaria do Ministério da Saúde deverá permitir a pacientes terminais, que já não respondem aos remédios disponíveis no mercado, utilizar drogas ainda em fase de testes.
"Brasil regulamenta protocolo de compaixão", dizia o título.
Apesar do caráter oficial do enunciado e da abertura da reportagem, havia ali muito pouco de governo.
Este aparecia uma única vez, no segundo parágrafo, na pessoa do coordenador do programa nacional de Aids.
Ainda assim, apenas para observar que o ministério prefere o termo "protocolo de acesso expandido".
Em essência, a reportagem se dedicava a descrever as expectativas em torno de um novo medicamento, o ABT-378, "um dos primeiros candidatos ao protocolo".
Registrava suas características, o sucesso obtido nos estudos "in vitro", o número de doentes brasileiros que poderão ser beneficiados e a declaração esperançosa de um infectologista.
No meio do texto, nova referência aos protocolos: seriam anunciados naquele dia, durante a conferência, pelo laboratório Abbott. Feita essa menção, voltava-se ao ABT-378.
No documento interno que diariamente encaminho à Redação, critiquei a reportagem por não ter informado que o medicamento é produzido pela empresa que custeou a cobertura da Folha.
De Lisboa, o repórter Aureliano Biancarelli me enviou as seguintes ponderações:
a) considerou o texto suficientemente esclarecedor, e não viu motivo para algum leitor imaginar que houve intenção de distanciar a notícia do nome do laboratório;
b) afirmou que o ABT-378 foi a única novidade, no que diz respeito a remédios, apresentada na reunião, e que a reação dos especialistas foi ainda mais entusiasmada do que seu relato deixou transparecer.
"Não é a primeira vez que o jornal cita uma droga quando acompanha congressos", completou. "Muitas vezes, ela não é produzida pelo laboratório que está bancando a viagem.
" Na terça-feira, recebi mensagem de um integrante do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa. Ele considerou a reportagem parcial por ter registrado, sem ouvir o Conep, que dois centros médicos brasileiros "ficaram fora dos estudos" com o ABT-378 "porque não receberam autorização em tempo hábil" do conselho.
"Não consta do 'Manual' que se deve consultar todas as partes envolvidas?", perguntou o autor do protesto, portador do HIV e representante, no Conep, dos usuários de medicamentos.
"Não tenho observado demora na tramitação de projetos que apresentem excelência científica e ética. " Ele também questionou a reportagem por ter se concentrado nos resultados do ABT-378.
O repórter respondeu que não atribuiu culpa ao conselho.
"Nem disse se houve culpa. Logo, não há outro lado nessa história.
" Quanto à segunda acusação, disse que o jornal sempre manteve postura independente, e que o destaque teria sido o mesmo se o fabricante do remédio não fosse o patrocinador da viagem.
Não tenho motivo para duvidar da seriedade profissional de Biancarelli, experiente jornalista da área de saúde. Nem penso que o leitor deva ser privado de informação relevante sobre pesquisas de Aids ou qualquer outro assunto porque uma parte envolvida arcou com as despesas do jornal.
É importante registrar ainda que, das reportagens enviadas da conferência durante toda a semana, apenas a de segunda-feira tinha relação direta com interesses do laboratório.
No entanto, é impossível não enxergar o conflito latente nesse tipo de arranjo, revelado pela própria estrutura da reportagem em questão.
À primeira vista, ela trata de uma política pública. Na verdade, o assunto é um remédio, embora isso não seja assumido na "embalagem" do texto. Tampouco faz sentido dizer que não há outro lado nessa história, e não apenas porque ele(s) existe(m) em quase todas.
O repórter explicou que pretende ouvir o Conep nos próximos dias, porque alguns pesquisadores acusam o órgão de atrasar o andamento de estudos no Brasil. Ou seja, controvérsia existe.
O jornal tem a obrigação de refleti-la, seja qual for a parcela de razão de cada um. A reportagem sobre o ABT-378 coincide com o constrangimento enfrentado por uma publicação norte-americana de enorme prestígio.
Há cerca de dez dias, o "New England Journal of Medicine" foi acusado de violar seu próprio código de ética ao publicar avaliações de medicamentos escritas por pesquisadores financiados pelos fabricantes desses produtos.
A denúncia foi feita pelo jornal "Los Angeles Times", que identificou o problema em 8 de 36 artigos investigados. A revelação não foi contestada. "Vamos tentar fazer a coisa certa, tornando nossa prática coerente com nossas regras", desculpou-se a editora do "Journal".
O caso dos EUA é mais grave, seja pela natureza examinadora dos textos, seja pelo vínculo formal entre quem escreve e a empresa que produz o objeto analisado.
Mas a discussão sobre conflito de interesses é a mesma suscitada pela reportagem da Folha. De volta a ela, ideal seria que o jornal dispensasse a cortesia, responsabilizando-se por todas as viagens que alimentam seu noticiário.
Se isso não for possível, pelo menos a transparência tem de ser levada ao extremo. No caso, não bastava informar quem pagou a conta. Era preciso dizer também, com destaque e de forma explícita, que foi o dono do ABT-378.
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