renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
As duas faces de Elián
As duas imagens desta coluna resumiram para milhões de pessoas, no final de semana passado, o desenlace da saga de Elián González, há meses em posição de destaque no noticiário dos EUA e por tabela de quase todo o mundo.
Se é que algum leitor teve como não saber, trata-se do menino encontrado em novembro na costa da Flórida, agarrado, assim como dois adultos, a destroços de uma embarcação vinda de Cuba. A mãe, o padrasto e outras oito pessoas morreram na travessia.
Elián, 6, foi acolhido por familiares que vivem em Miami. Desde então, estes se recusavam a devolvê-lo ao pai. No sábado, agentes do Serviço de Imigração pegaram a criança e a levaram ao encontro de Juan Miguel González em uma base aérea perto de Washington.
A primeira foto foi feita por um free-lancer, durante a operação, para a agência "Associated Press". Ele estava na casa autorizado pelos parentes de Elián, com os quais desenvolveu um relacionamento ao longo da extensa cobertura.
A segunda, distribuída para divulgação, foi tirada no mesmo dia na casa em que o garoto, o pai, sua segunda mulher (ele era divorciado da mãe de Elián) e o bebê do casal estão alojados na base. O autor é o advogado de Juan Miguel.
A guerra das fotos traduz a guerra de propaganda pela posse de Elián, que opõe o regime cubano à comunidade anticastrista de Miami, com o governo dos EUA em atípica inclinação, ainda que dissimulada, pela primeira parte.
Uma imagem mostra o menino apavorado com a invasão armada, ao lado de um dos homens que o salvaram do mar. Na outra ele aparece sorrindo abraçado ao pai.
No fechamento de suas capas de domingo, editores tiveram de escolher "a" foto. Alguns jornais, como "The Washington Post" e "Los Angeles Times", decidiram-se pelas duas, publicadas lado a lado.
"The New York Times" ficou com a segunda. Ela não existia no início da rodagem. Quando chegou, a primeira foto foi movida para uma página interna. Ficaram na capa pai e filho reunidos e, com menos destaque, Elián chorando no colo de uma agente na saída da casa dos parentes.
Muitos diários deram na primeira página apenas a imagem da operação. Foi o que fez a Folha. Não há problema sério na opção, embora a de duas fotos fosse a ideal no caso.
A cena de Miami tem ação, temperatura e impacto em níveis muito elevados para ser desprezada como notícia. Além disso, é tolice pensar que a via salomônica garante, sozinha, equilíbrio à edição.
O que o leitor mais precisava era de contexto para avaliar uma história repleta de manipulação. E aí está o problema, pois contexto foi o que faltou na capa da Folha de domingo.
Relativamente curto, o título da chamada ("Elián, 6, é tirado à força de parentes") não permitiu dizer que o menino foi "tirado de parentes" para ser devolvido ao pai. Outros jornais reuniram as duas informações em seus enunciados.
O texto omitia que os familiares estavam detendo o garoto de forma ilegal, sem o consentimento do pai e das autoridades de imigração. Também não esclarecia que a operação foi decidida após fracassadas tentativas de negociação.
Para completar, a chamada assumia como fato a versão do rapaz que aparece ao lado de Elián na foto. Segundo ele, o menino gritava ("O que está acontecendo? Ajudem-me") ao ser levado do quarto.
O pacote formado por foto, título incompleto e texto enviesado é uma aula de parcialidade jornalística. Vale lembrar que isso não aconteceu em um dia qualquer, e sim no desfecho da novela (primeira fase ao menos) do "náufrago cubano".
Não parou por aí. Título da chamada de segunda-feira: "Pai fraudou foto em que Elián sorri, diz parente". Era aposta em cavalo errado. A própria reportagem permitia perceber a fragilidade da acusação, que veio a ser refutada (o sorriso pode ou não ser espontâneo; fraude é outra coisa).
No mesmo dia, uma descrição da foto da invasão afirmava que o menino estava "sob a mira" da arma do agente. Àquela altura, exaustiva discussão sobre esse ponto nos EUA já havia concluído que não estava.
Na terça-feira, reportagem sobre a ameaça de greve em Miami lembrava que, no sábado, os familiares haviam "perdido a guarda" do menino, como se pudessem perder o que não tinham.
Até pouco tempo atrás, o quadro "para entender o caso" ensinava que Fidel Castro "tem capitalizado o episódio politicamente". Sem dúvida. Apenas se esquecia de ponderar que os candidatos à sucessão de Bill Clinton tentam fazer o mesmo.
Tudo somado, o leitor pode achar que o jornal vive um surto de obsessão anticastrista. É mais provável que se trate de uma mistura de ingenuidade e desinformação.
Em meio à guerra das fotos, a Folha será útil se conseguir mostrar tudo o que existe entre os extremos de Elián capturados nas duas imagens. Até agora o jornal ficou longe disso.
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