renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Tudo por dinheiro
"Kuerten abre mão do ouro por dinheiro." Assim a Folha resumiu, na manchete de seu caderno de esportes de quarta-feira, a notícia de que o principal atleta do país havia desistido de ir aos Jogos de Sydney, na ausência de acordo entre seu patrocinador e o Comitê Olímpico Brasileiro quanto à logomarca que seria exibida pelo tenista na competição.
Diante da crueza condenatória do título, não foi surpresa encontrar a caixa de correspondência fornida de protestos. Às dezenas.
"Sensacionalismo barato", escreveu um leitor. "Brincadeira de mau gosto", disse outro. "Chega de demagogia", pediu um terceiro. Outra identificou no enunciado a atração que jornalistas sentem por jogos de palavras ("ouro por dinheiro"), ainda que, para utilizá-los, às vezes seja preciso forçar a mão.
Não é de hoje que leitores enxergam má vontade da Folha para com Gustavo Kuerten, tema recorrente nas mensagens à ombudsman.
Algumas, embora legítimas como expressão do sentimento do torcedor, carecem de fundamento do ponto de vista jornalístico.
Há poucos dias, um leitor apontava, como exemplo de perseguição, a visibilidade dada à eliminação do brasileiro, por um adversário obscuro, na primeira rodada do Aberto dos EUA.
O destaque (reportagem na capa de Esporte não foi maior do que o conferido às conquistas de Kuerten (basta lembrar da extensa cobertura feita pelo caderno, uma semana antes, para celebrar o título obtido em Indianápolis, o primeiro fora do saibro).
A chamada de primeira página existiu na Folha, nos concorrentes locais e em jornais estrangeiros.
Se notícia é a reversão da expectativa, fazia todo sentido chamar atenção para esse resultado. Número 1, em excelente fase, o brasileiro era considerado um dos favoritos no torneio em Nova York.
No entanto, seria um equívoco atribuir todas as críticas à indisposição do torcedor para conviver com reveses de seus ídolos.
Ainda sobre o Aberto dos EUA, leitores estranharam a manchete da eliminação: "100ª derrota, a pior do ano". "Dá a entender que Kuerten tem uma trajetória marcada por percalços", observou um deles.
Outro considerou o enunciado carente de sentido, "principalmente para quem entende alguma coisa de hipóteses ou de tênis, um jogo em que não há empate".
De fato, o número transmite birra, embora tenha um significado (segundo o cálculo apresentado, a carreira do brasileiro seria a mais oscilante da atual elite do tênis).
No caso do título de quarta-feira, os leitores estão cobertos de razão. Para começar, Kuerten disse ter tomado a decisão por lealdade à Diadora, sua patrocinadora desde o tempo em que ninguém sabia quem ele era e o que viria a ser.
Pode-se encarar a explicação com simpatia, indiferença ou mesmo ceticismo (na sexta-feira, ao relatar o entendimento que permitiu a ida do tenista a Sydney, a Folha achou por bem se referir à lealdade dele entre aspas).
Seja qual for a percepção de cada um, a idéia de que Kuerten desistiu para não perder dinheiro é no mínimo questionável.
O que aconteceria se ele tivesse rompido com a Diadora para competir vestido de Olympikus, a patrocinadora da delegação brasileira? No atual estágio de sua carreira, no dia seguinte estaria sob nova marca, ganhando mais.
Suponhamos que o enunciado tenha pretendido mostrar, com o uso da palavra "dinheiro", qual é a regra do jogo no mundo do esporte de ponta. O raciocínio é correto. Sem dúvida menos mistificador do que "O patriotismo fala mais alto", um dos títulos do "Estado" de sexta-feira.
O resultado, entretanto, é que a manchete espelhou a versão do COB. "Lamento ele ter se curvado a uma empresa estrangeira", dizia na reportagem o presidente do comitê, Carlos Arthur Nuzman (a Diadora é italiana).
"Não vou admitir que coloquem a culpa no COB ou na Olympikus." A Folha também não. De saída, tratou de colocar a culpa em Gustavo Kuerten.
Não foi preciso fazer pesquisa para saber de que lado ficou o público. Nuzman logo entendeu que o ônus seria todo seu.
No movimento de recuo, deu-se o segundo tropeço do jornal. Na quinta-feira, à diferença do noticiário dos concorrentes, o seu não dava sinal do acordo iminente.
De volta à queixa crônica dos leitores ("a Folha pega no pé"), cabe notar que esse é um traço da personalidade do jornal, pouco inclinado à afetividade que marca a relação do público com Kuerten. Não por acaso, é o único que não o chama de Guga.
Caráter provocador não é defeito em um jornal, pelo contrário. O problema é olhar apenas para o próprio umbigo e achar que qualquer provocação se justifica.
Mais do que ao tomar partido, a manchete errou ao passar totalmente da medida em agressividade. Seu objetivo era interpretar, mas ela apenas ofende. O personagem da notícia e o leitor.
Uma boa e uma má notícia para quem leu a Folha de quarta-feira na Internet.
A boa é que esse leitor foi poupado da violenta manchete de Esporte. Ela não constou da versão eletrônica.
A má é que não havia uma linha sobre a desistência de Kuerten no jornal transposto para a tela.
Por limitações de ordem técnica que a Folha ainda não conseguiu superar, ela costuma mandar para a rede sua edição que fecha mais cedo. Quando a notícia chega tarde, como ocorreu nesse caso, o resultado é desastroso.
Por certo havia informação disponível no noticiário em tempo real produzido pela Folha Online. Mas quem buscou o jornal propriamente dito encontrou, na tela, um produto mais frio que o papel.
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