renata lo prete
escreveu até março de 2001
Renata Lo Prete, jornalista, entrou na Folha em 1986, no caderno "Ilustrada". Foi editora-adjunta de "Mundo", editora de "Ciências" e, em 1998, assumiu o cargo de ombudsman, que ocupou por três anos. Foi ainda editoria da coluna Painel, publicada diariamente no caderno "Poder".
Piloto automático
"Seis pessoas morreram assassinadas dentro de uma loja de assistência técnica para celulares em São Paulo, a maior chacina do ano no Estado."
Quantas vezes você encontrou na Folha um texto com abertura semelhante a essa da edição de quinta-feira? Se é leitor assíduo, muitas, porque todas as reportagens do jornal sobre o assunto se parecem.
O que não significa que as chacinas sejam todas iguais. Basta conferir o início da matéria no "Estado" do mesmo dia.
"Ao contrário das chacinas normalmente registradas em São Paulo, desta vez o crime não aconteceu em favela ou bar de área pobre, durante a madrugada. Entre 17h e 18h de ontem, seis pessoas foram assassinadas numa loja de celulares na rua Clélia, 2.138, na Lapa."
"Apesar de lugar e horário "incomuns", a lei do silêncio é a mesma da periferia. Com medo, moradores da região dizem que não sabem de nada."
A reportagem da Folha padecia ainda de outros males. Confusa, caía em conflito quanto a detalhes da ação. Em um trecho, vizinhos tinham ouvido disparos. Adiante, ninguém tinha ouvido nada, possivelmente devido a um silenciador.
Como material de apoio, o jornal descongelou o quadro que tem pronto para essas ocasiões: "Chacinas no município de São Paulo", com evolução do números de casos, supostas motivações e índice de crimes esclarecidos.
Enquanto isso, o concorrente fez um pequeno mapa para indicar a localização da loja na rua Clélia e desta no conhecido e movimentado bairro da Lapa.
Mas nada como a comparação das aberturas para revelar que uma história pode ganhar chamada de capa, aparecer em alto de página e ainda assim ser destruída pelo jornal.
Faltou à Folha sensibilidade para perceber que a notícia não cabia na fórmula tradicionalmente usada para relatar chacinas, desgraça associada às pessoas pobres da periferia distante, não à vizinhança do leitor.
São notas secas, de narrativa truncada e quase sem personagens. Seu fim não é contar o que aconteceu, mas apenas fechar o saldo de mortos do ano e compará-lo ao do período anterior.
Com os assassinatos da Lapa, o jornal mostrou-se desligado pela segunda vez em poucos dias.
A primeira ocorreu na edição do sábado anterior, 3 de março. Na véspera, a cidade fora atingida por um temporal cujas consequências fugiram ao quadro de transtornos com que o paulistano se habituou a conviver.
Quem viu pela televisão não terá se esquecido das imagens da mulher idosa resgatada de um carro à deriva na avenida Pompéia inundada.
Instantes depois de se julgar a salvo em uma calçada, foi colhida pela enxurrada. Os bombeiros encontraram o corpo a 150 metros dali.
Na reportagem da Folha, os eventos foram reduzidos ao coquetel habitual de número de pontos de alagamento na cidade, extensão dos congestionamentos e volume de precipitação. Mais o cálculo reconfortante de que foram 31 as vítimas fatais da chuva no Estado desde dezembro, quantidade inferior às 43 do mesmo período em 1999-2000.
Da mulher levada pelas águas não havia nem o nome.
"Duas mulheres morrem em temporal em SP", informou o título da capa (a outra caiu em um córrego na Penha). No concorrente: "Idosa afoga-se em enxurrada na avenida Pompéia". Nem sempre a conta dos mortos é o melhor resumo dos fatos.
"Não sei como explicar a avenida Pompéia para quem não conhece São Paulo", escreveu Clóvis Rossi em sua coluna de domingo passado.
"Talvez pudesse descrevê-la apenas como uma via normal, que não está em área de risco, que não tem córrego nas imediações, habitada pela classe média ou por prédios comerciais a ela destinados."
Faltou à reportagem da Folha essa capacidade de se espantar. Sem ela, chuva é sempre chuva, e toda chacina é a mesma. A notícia chega morta ao leitor.
Já tratei neste espaço do noticiário sobre a doença de Mário Covas. Não vejo necessidade de voltar ao assunto de maneira alentada, mas cabe registrar que também esse caso não terminou bem para a Folha.
A última entrevista do governador, a primeira do presidente depois da morte de Covas, o primeiro artigo de Geraldo Alckmin como titular do cargo: tudo estava na concorrência.
Informação médica, descrições de velório e enterro, repercussão de primeira hora: em nada o jornal se destacou positivamente.
Nos episódios da chacina e da chuva, falhou-se diante do inesperado. Neste último, nem se pode alegar surpresa. O conjunto é mais do que suficiente para acender um sinal de alerta.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade