É escritor e jornalista. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas,
quartas, sextas e sábados.
Cinzas
RIO DE JANEIRO - Minha amiga Ira Etz "postou" uma foto que tirou no Jardim Botânico. Ao enroscar-se ao pé da monumental sumaúma --a árvore na praça do chafariz tornada famosa por ter sido a favorita de Tom Jobim--, Ira encontrou sobre as raízes um pó amarelado. Sabia o que era: cinzas funerárias, provenientes de cremação. De propósito ou não, alguém despejara o pai ou a mãe por ali. Ira fotografou o pó sobre as raízes.
No RJ e em SP, o número de cremações arrisca superar o de sepultamentos. O que talvez seja uma coisa boa. Cremar sai mais em conta; os cemitérios estão superlotados e, de tempos em tempos, milhares de seus habitantes são removidos para dar lugar a outros; e o destino das cinzas numa urna pode ter um caráter mais rico e simbólico do que o de um simples enterro.
Não foi bem o caso do roqueiro Keith Richards, que vazou para a imprensa que, com outras substâncias, havia cheirado por engano o próprio pai --apenas para depois desmentir que tivesse feito isto. Ou o do infernal escritor Ambrose Bierce (1842-c. 1913), autor do "Dicionário do Diabo", que contou para o jornalista H. L. Mencken que mandara cremar o filho e, ao ser perguntado se depositara as cinzas numa bela urna, respondeu: "Que mané urna? Estão aqui mesmo, nessa caixa de charutos!".
Nada contra alguém dar o destino que quiser ao corpo de um ente querido --a viúva do contrabaixista Charles Mingus, por exemplo, foi de Nova York à Índia para atirar as cinzas do marido no rio Ganges, como ele pedira. Mas não haverá uma certa desconsideração em depositar o dito ente onde as pessoas se espalham, pisam ou se sentam?
Há pouco, outra amiga jogou as cinzas de sua mãe na praia do Leblon. Ao contato com a água e o sol, elas ganharam um brilho de cristal, e lentamente se confundiram com o mar. Foi bonito.
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