É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.
Servidão voluntária
"Eu não tenho nada para esconder. Por isso, pouco me importa que os EUA vejam meus e-mails, desde que isso nos permita vivermos em um mundo mais seguro."
Eu encontrei tal afirmação em um "post" no qual seu autor comentava uma notícia sobre o caso Edward Snowden. A primeira coisa que me veio à mente foi a lembrança de ter ouvido essa frase antes, mas em um contexto relativamente diferente.
Décadas atrás, um conhecido que estudava na antiga Alemanha Oriental, dissera: "Pouco me importa saber que a Stasi [polícia secreta da antiga Alemanha Oriental] me espione. Esse é o preço para defender o socialismo".
Ele só esquecera de per-guntar quanto valia um so- cialismo construído por meio da completa destruição da noção de espaço privado. Regime no qual os cidadãos alimentam a confiança infantil de que estão sendo escutados por alguém que perceberá quão bons e ordeiros eles são e que, por isso, merecem a proteção que os reis dedicavam aos bons súditos.
De fato, eu me perguntava se não havia algo de "amor ao agressor" e de necessidade neurótica de amparo nessa estranha tendência psicológica à servidão voluntária.
Hoje, quase 25 anos depois [da queda do Muro de Berlim], impressiona perceber quão parecidos são, em sua cegueira ideológica, essas duas pessoas que julgam defender mundos diferentes. É engraçado perceber como, no fundo, eles querem a mesma coisa: sacrificar, de uma vez por todas, a liberdade no altar de seus medos e obsessões.
Mesmo o filósofo Thomas Hobbes costumava dizer, à sua maneira: a soleira da minha porta é o limite do poder do Estado. O que pode significar que o Estado não entra, não legisla e nada diz sobre o que faço em meu espaço privado. Alguns dirão: "Salvo em situações excepcionais". O que explica por que governar, hoje, significa, em larga medida, perpetuar as ditas situações excepcionais a fim de o Estado poder legislar fora da lei.
Em um mundo onde até mesmo um louco assassinando alguém a machadinha transformou-se em um atentado terrorista, não é difícil imaginar como viveremos em um Estado de exceção permanente. O que me intriga é por que ainda chamar de "democracia" a uma situação assim.
Nesse sentido, devemos exigir do governo brasileiro, depois de descobrir que a privacidade de seus cidadãos foi violada sistematicamente por uma empresa que prestou serviços ao próprio governo brasileiro no período FHC, que forneça asilo a Snowden. Seu gesto foi eminentemente político. Talvez o gesto político por excelência em um momento como o nosso. Que pessoas como ele possam continuar a fazer gestos como o seu.
VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.
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