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Estamos
no auge da chamada Revolução Científica, séculos
17 e 18. Época de poucas certezas. Havia incontáveis
dúvidas, por exemplo, sobre o processo de concepção
humana...
Interrompa-se aqui o texto, para esclarecer aonde desejamos chegar.
Talvez seja este um gesto de honestidade. Sobretudo diante de leitores
mais dogmáticos, aos quais se oferece a oportunidade de interromper
imediatamente a leitura.
Planeja-se, inicialmente, realizar um mergulho no passado. Iremos
pescar em tempos idos a posição da Igreja diante de
uma prática ainda muito popular: a masturbação.
Voltaremos em seguida aos dias que correm. E lançaremos um
olhar sobre a posição do Vaticano em relação
à Aids. Por último, faremos uma defesa de Deus. Sim,
temos essa pretensão. Defenderemos Deus.
Feitos os esclarecimentos, podemos retornar à Revolução
Científica e às dúvidas sobre a concepção
humana. Por sorte, contamos com o auxílio da portuguesa
Clara Pinto-Correia. Ela é professora de biologia e autora
do interessantíssimo O Ovário de Eva (Editora
Campos, 1999). O livro relata as tentativas do homem de entender
o mistério dos mistérios, na definição
dos gregos.
Em dado momento, conta-nos a professora Clara, consolidaram-se duas
correntes. Ambas partiam de um mesmo pressuposto: o de que Deus,
ao criar o Universo, acomodara as gerações de seres
humanos dentro de seus futuros pais. Assim, Adão e Eva traziam
enterrados dentro de si espécies de cápsulas contendo
Caim e Abel. Morto Abel, Caim se encarregou de trazer à vida
o ser que lhe fora reservado, e assim sucessivamente.
Alguém há de perguntar: Mas se Adão e Eva só
tiveram dois filhos, com quem há de ter copulado Caim. A
Bíblia anota que Caim conheceu sua mulher, que deu à
luz a Henoc. E mais não esclarece. De duas uma: ou ele teve
uma irmã, com quem se deitou, ou manteve relações
com a mãe. Mas essa é outra história, na qual
Clara não ousou meter a colher. Nós tampouco nos atreveremos.
Concentremo-nos no debate sobre concepção. O que dividia
os antigos estudiosos era a discussão sobre onde estariam,
afinal, os seres programados pelo Todo Poderoso, se no ovário
ou nos testículos. Dependendo das teses que abraçassem,
os contendores eram classificados como ovistas ou espermistas.
Seguida de perto pela Igreja, a contenda percorreria caminhos hilários.
O lado espermista não sabia como classificar o sêmen.
Uns diziam que era suor. Outros, que era saliva. Ou leite. Ou sangue.
Houve até quem dissesse que o espermatozóide era um
animal.
A suposição de que um único animalzinho bastava
para deflagrar o processo de concepção levou a uma
nova polêmica: milhões de potenciais seres humanos
estariam sendo desperdiçados a cada relação
sexual.
Estuda daqui, debate dali chegou-se à conclusão de
que Deus não aprovaria tamanho derramamento de sêmen.
A Igreja, afinal, sempre condenara a masturbação.
A própria Bíblia dá conta, em Gênesis
(38:4-10), da desaprovação do Senhor ao gesto de Onan
que, ao deitar-se com a cunhada, interrompia o coito na hora h,
derramando o sêmen sobre o solo.
Chegou-se ao requinte de analisar as implicações jurídicas
da masturbação. Especialistas consideraram que o vício
solitário dificilmente conduziria a uma condenação
nos tribunais. Não por ausência de gravidade no ato,
mas porque normalmente ele ocorria em local clandestino, longe de
olhares curiosos. O crime teria mesmo de receber punição
divina.
A coisa se complicou quando alguns médicos começaram
a prescrever a masturbação como forma de purificar
o organismo das vítimas de excessivo desejo sexual. Piorou
ainda mais no instante em que um monge espanhol, Juan Caramuel,
teve a audácia de dar curso à idéia de que
aliviar o corpo dos excessos de sêmen era prática médica
saudável. Pagou com uma condenação pública
do papa Inocêncio 11o., em 1679.
As posições da Igreja e as dúvidas suscitadas
pelas teses espermistas estimularam a condenação
mais aberta e franca da masturbação. Em 1715, um panfleto
anônimo despejado sobre Londres classificava a polução
como vício hediondo. Um vício que, além de
atentar contra a natureza, retardaria o desenvolvimento físico
de meninas e meninos. Pior: sujeitaria todos eles a uma série
de doenças. Por exemplo: úlceras, convulsões,
epilepsia e até a impotência.
O livreto, chamado Onania, teria estrepitoso sucesso.
Passados 22 anos, alcançou a sua 22a. edição
em 1737. E levou um médico suíço, Samuel-Auguste-André-David
Tissot, a se debruçar sobre o estudo das doenças associadas
à masturbação, emoldurando com argumentos médicos
uma peça de grosso charlatanismo.
Uma das obras de Tissot, O onanismo, teve grande influência
em toda a Europa. Ajudou a disseminar o medo e a culpa que perseguiam
os praticantes da autopolução.
Outro livro _ As confissões, de Jean-Jacques
Rousseau _, publicado simultaneamente ao de Tissot, tonificou a
idéia de que o desperdício de sêmen contribuía
para a decadência da raça humana.
A tese foi de tal modo difundida que, no século 19, o Grande
Dicionário Universal de Pierre Larousse definiria assim o
verbete marturbação: não
nos cabe descrever um ato infelizmente tão conhecido e tão
vergonhoso.
Hoje, já se sabe que fim levou o debate sobre a concepção.
Esclarecido o processo que dá origem aos bebês, discute-se
agora algo tão sofisticado quanto a possibilidade de interferir
no destino do ser humano a partir de manipulações
feitas no seu DNA.
Sabe-se também que, por inócuas, as teses acerca
da masturbação perderam-se no tempo. Não sei
se a prática continua sendo vista como anticristã.
Hoje, porém, não há adolescente
que deixe de praticar o antigo pecado mortal. Um fenômeno,
de resto, fartamente disseminado entre padres e seminaristas, sob
o manto hipócrita do celibato.
Como se vê, em suas incursões no campo da moralidade,
a Igreja pode sujeitar-se ao ridículo. O mesmo ocorre agora
em relação ao homossexualismo e à Aids. Chega-se
ao requinte de reprimir padres que, à frente de obras sociais
que prestam assistência a aidéticos, se arriscam a
defender a distribuição gratuita de camisinhas.
Ora, ao opor-se ao uso da camisinha, em nome de uma utópica
castidade cristã, o clero não se limita a roçar
o hilário. Coloca-se ao lado da morte, afrontando um dos
dez mandamentos sagrados.
O mesmo João Paulo 2o. que recentemente pediu perdão
pelos pecados que a Igreja cometeu no passado abespinhou-se dias
atrás com uma parada gay que cortou ruas de Roma. Indiretamente,
ele patrocina um novo crime: o preconceito velado aos homossexuais,
seres humanos que mereciam tratamento mais cristão.
Assim como não pode ser associado a outras faltas da Igreja,
Deus também não deve ser responsabilizado pela insensibilidade
atual. Ainda que tentem apresentá-lo como co-responsável,
é difícil enxergar digitais divinas nas Cruzadas,
no descaso em relação às vítimas do
Nazismo e na Inquisição, para citar apenas três
exemplos.
Agora mesmo Deus deve estar gritando lá de cima: Parem
com isso, parem com isso. O diabo é que ninguém
o escuta.
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