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  11 de julho
  Masturbação, Aids e uma defesa de Deus
 

Estamos no auge da chamada Revolução Científica, séculos 17 e 18. Época de poucas certezas. Havia incontáveis dúvidas, por exemplo, sobre o processo de concepção humana...
Interrompa-se aqui o texto, para esclarecer aonde desejamos chegar. Talvez seja este um gesto de honestidade. Sobretudo diante de leitores mais dogmáticos, aos quais se oferece a oportunidade de interromper imediatamente a leitura.
Planeja-se, inicialmente, realizar um mergulho no passado. Iremos pescar em tempos idos a posição da Igreja diante de uma prática ainda muito popular: a masturbação. Voltaremos em seguida aos dias que correm. E lançaremos um olhar sobre a posição do Vaticano em relação à Aids. Por último, faremos uma defesa de Deus. Sim, temos essa pretensão. Defenderemos Deus.
Feitos os esclarecimentos, podemos retornar à Revolução Científica e às dúvidas sobre a concepção humana. Por sorte, contamos com o auxílio da portuguesa Clara Pinto-Correia. Ela é professora de biologia e autora do interessantíssimo “O Ovário de Eva” (Editora Campos, 1999). O livro relata as tentativas do homem de entender “o mistério dos mistérios”, na definição dos gregos.
Em dado momento, conta-nos a professora Clara, consolidaram-se duas correntes. Ambas partiam de um mesmo pressuposto: o de que Deus, ao criar o Universo, acomodara as gerações de seres humanos dentro de seus futuros pais. Assim, Adão e Eva traziam enterrados dentro de si espécies de cápsulas contendo Caim e Abel. Morto Abel, Caim se encarregou de trazer à vida o ser que lhe fora reservado, e assim sucessivamente.
Alguém há de perguntar: Mas se Adão e Eva só tiveram dois filhos, com quem há de ter copulado Caim. A Bíblia anota que Caim conheceu sua mulher, que deu à luz a Henoc. E mais não esclarece. De duas uma: ou ele teve uma irmã, com quem se deitou, ou manteve relações com a mãe. Mas essa é outra história, na qual Clara não ousou meter a colher. Nós tampouco nos atreveremos.
Concentremo-nos no debate sobre concepção. O que dividia os antigos estudiosos era a discussão sobre onde estariam, afinal, os seres programados pelo Todo Poderoso, se no ovário ou nos testículos. Dependendo das teses que abraçassem, os contendores eram classificados como “ovistas” ou “espermistas”.
Seguida de perto pela Igreja, a contenda percorreria caminhos hilários. O lado espermista não sabia como classificar o sêmen. Uns diziam que era suor. Outros, que era saliva. Ou leite. Ou sangue. Houve até quem dissesse que o espermatozóide era um animal.
A suposição de que um único animalzinho bastava para deflagrar o processo de concepção levou a uma nova polêmica: milhões de potenciais seres humanos estariam sendo desperdiçados a cada relação sexual.
Estuda daqui, debate dali chegou-se à conclusão de que Deus não aprovaria tamanho derramamento de sêmen. A Igreja, afinal, sempre condenara a masturbação. A própria Bíblia dá conta, em Gênesis (38:4-10), da desaprovação do Senhor ao gesto de Onan que, ao deitar-se com a cunhada, interrompia o coito na hora “h”, derramando o sêmen sobre o solo.
Chegou-se ao requinte de analisar as implicações jurídicas da masturbação. Especialistas consideraram que o vício solitário dificilmente conduziria a uma condenação nos tribunais. Não por ausência de gravidade no ato, mas porque normalmente ele ocorria em local clandestino, longe de olhares curiosos. O crime teria mesmo de receber punição divina.
A coisa se complicou quando alguns médicos começaram a prescrever a masturbação como forma de purificar o organismo das vítimas de excessivo desejo sexual. Piorou ainda mais no instante em que um monge espanhol, Juan Caramuel, teve a audácia de dar curso à idéia de que aliviar o corpo dos excessos de sêmen era prática médica saudável. Pagou com uma condenação pública do papa Inocêncio 11o., em 1679.
As posições da Igreja e as dúvidas suscitadas pelas teses “espermistas” estimularam a condenação mais aberta e franca da masturbação. Em 1715, um panfleto anônimo despejado sobre Londres classificava a polução como vício hediondo. Um vício que, além de atentar contra a natureza, retardaria o desenvolvimento físico de meninas e meninos. Pior: sujeitaria todos eles a uma série de doenças. Por exemplo: úlceras, convulsões, epilepsia e até a impotência.
O livreto, chamado “Onania”, teria estrepitoso sucesso. Passados 22 anos, alcançou a sua 22a. edição em 1737. E levou um médico suíço, Samuel-Auguste-André-David Tissot, a se debruçar sobre o estudo das doenças associadas à masturbação, emoldurando com argumentos médicos uma peça de grosso charlatanismo.
Uma das obras de Tissot, “O onanismo”, teve grande influência em toda a Europa. Ajudou a disseminar o medo e a culpa que perseguiam os praticantes da autopolução.
Outro livro _ “As confissões”, de Jean-Jacques Rousseau _, publicado simultaneamente ao de Tissot, tonificou a idéia de que o desperdício de sêmen contribuía para a decadência da raça humana.
A tese foi de tal modo difundida que, no século 19, o Grande Dicionário Universal de Pierre Larousse definiria assim o verbete “marturbação”: “não nos cabe descrever um ato infelizmente tão conhecido e tão vergonhoso”.
Hoje, já se sabe que fim levou o debate sobre a concepção. Esclarecido o processo que dá origem aos bebês, discute-se agora algo tão sofisticado quanto a possibilidade de interferir no destino do ser humano a partir de manipulações feitas no seu DNA.
Sabe-se também que, por inócuas, as teses acerca da masturbação perderam-se no tempo. Não sei se a prática continua sendo vista como anticristã. Hoje, porém, não há adolescente que deixe de praticar o antigo pecado mortal. Um fenômeno, de resto, fartamente disseminado entre padres e seminaristas, sob o manto hipócrita do celibato.
Como se vê, em suas incursões no campo da moralidade, a Igreja pode sujeitar-se ao ridículo. O mesmo ocorre agora em relação ao homossexualismo e à Aids. Chega-se ao requinte de reprimir padres que, à frente de obras sociais que prestam assistência a aidéticos, se arriscam a defender a distribuição gratuita de camisinhas.
Ora, ao opor-se ao uso da camisinha, em nome de uma utópica castidade cristã, o clero não se limita a roçar o hilário. Coloca-se ao lado da morte, afrontando um dos dez mandamentos sagrados.
O mesmo João Paulo 2o. que recentemente pediu perdão pelos pecados que a Igreja cometeu no passado abespinhou-se dias atrás com uma parada gay que cortou ruas de Roma. Indiretamente, ele patrocina um novo crime: o preconceito velado aos homossexuais, seres humanos que mereciam tratamento mais cristão.
Assim como não pode ser associado a outras faltas da Igreja, Deus também não deve ser responsabilizado pela insensibilidade atual. Ainda que tentem apresentá-lo como co-responsável, é difícil enxergar digitais divinas nas Cruzadas, no descaso em relação às vítimas do Nazismo e na Inquisição, para citar apenas três exemplos.
Agora mesmo Deus deve estar gritando lá de cima: “Parem com isso, parem com isso”. O diabo é que ninguém o escuta.


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