Nina Horta
Sem preconceito
'Comece pelo espinafre; uma ponta de acidez pousada sobre um fundo aveludado de uma sutileza incrível'
Eu me sinto um cronópio quando acho prazer nas coisas mais comezinhas, mais politicamente incorretas, quando todo mundo está se esgoelando pelos seus altos ideais. Pois a vida é politicamente incorreta.
Gosto de escolas de samba assim como da cerimônia do Oscar. Durmo um pouco, confesso. E leio durante os anúncios. Até visita do papa não gosto de perder. Casamento de princesa, então, é o meu forte.
Nem durmo. Cerimônia de posse, novela, entrevistas, séries. De algumas coisas tenho implicância à toa, como programas de humor, concurso de cantorias, gente debaixo do edredom etc.
Dirão vocês que não tenho senso crítico, que é tudo fingimento, que os reality shows são marmelada etc. e tal. Mas quem pensa que não são? É para divertir, para escapar mesmo. E quanto piores são os shows de TV, mais graça acho. Já me acostumei até às irmãs Kardashian.
Os meus melhores momentos de TV foram com "Maria do Bairro", novelão mexicano. Era hilário, a menina mudava de penteado, e o noivo de anos e anos não a conhecia mais. Só por causa da trança.
Aceito todas as comidas novas que aparecem. Não custa experimentar. A melancia grelhada da Bela Gil. Por que implicar tanto? É por isso que gosto de ler revistas estrangeiras, lá não tem um churrasco sem melão grelhado ou outra fruta qualquer.
O engraçado é a cara insegura dos que vão comer lá no programa. Morrem de medo de serem pegos ignorantes no quesito comida. Soltem-se, ninguém vai reparar!
Todo esse preâmbulo para dizer que gosto de quase todo livro de cozinha, sempre há pelo menos uma novidade, um jeito diferente de se servir o óbvio, mas de vez em quando o livro é bem escrito. Muito de vez em quando.
Afinal, a culinária contempla técnicas, e manuais de técnicas geralmente não criam literatura.
Pois peguei um livrinho de uma francesa que roda pela casa há uns 15 anos. Tem a palavra "amor" no título, imagino que por causa disso não o li. (Há que se ter pelo menos uns limites). Abri ao léu e dei com uma receita de espinafre, ingrediente que me deixa bege.
"Comece pelo espinafre, minha filha, compre fresco, na feira, onde as folhas brilham escandalosamente. Você talvez descubra o gosto dele, uma ponta de acidez pousada sobre um fundo aveludado de uma sutileza incrível. Ao chegar em casa é bom passar as folhas na água para lhes renovar um pouco o vigor perdido na sua cesta. Escorra as folhas, sem os caules.
Numa wok, eu as aqueço com um pouquinho de azeite. Junto um alho amassado, mexo de leve com colher de pau, só para perderem bastante água. Então, ponho um pouco de noz-moscada, sal e deixo no banho-maria. Sirvo assim, puras, acompanhando um peixe ou uma galinha.
Ah, já ia me esquecendo, se houver sobrado uma água do cozimento da galinha, ponha numa frigideira até quase caramelar e na hora junte ao espinafre.
Dá um gostinho bom. Já dourei uns pignoli e jogo por cima. E, se tudo der certo, hei de ter uma romã e uso as sementes vermelhas para ficar bonito."
Fiquei com um desejo terrível de comer espinafre com pignoli e romã.