A cracolândia muda, mas não deve acabar, diz antropóloga
Para pesquisadora, cidade terá de conviver com ponto de consumo de droga
Autora de livro sobre o tema diz que repressão aumenta resistência e defende políticas de redução de danos
A cracolândia diminuiu. Como resultado de políticas públicas, ela é cerca de um terço do que era no início da década e está mais concentrada. Mas, na avaliação da antropóloga Taniele Rui, 32, ela dificilmente vai acabar.
"A cracolândia anda. Não se tira à força ninguém do espaço urbano. A cidade vai ter que conviver com ela", afirma a pesquisadora, que lança "Nas Tramas do Crack - Etnografia da Abjeção" (Terceiro Nome, 400 págs.).
O texto, vencedor do Prêmio Capes de Tese de 2013, é de seu doutorado pela Unicamp. Entre 2008 e 2011, ela percorreu cenários da droga em São Paulo e em Campinas, apurando dinâmicas de usuários e das ações oficiais.
Leia a entrevista a seguir.
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Folha - O crack completa 25 anos no Brasil. A cracolândia em São Paulo tem 20 anos. O que explica esse quadro?
Taniele Rui - A primeira entrada da droga em São Paulo foi na zona leste, em São Miguel [Paulista]. Havia um grande crescimento da violência, muitas mortes, grupos de extermínio, disputas no tráfico. Houve uma migração dos usuários da periferia para o centro, que se tornou um espaço de refúgio. Os primeiros registros da cracolândia são de 1995, quando era ainda um local de preparação da droga. Nos anos 2000, virou um espaço de consumo.
Por que a cracolândia é o ponto mais radical das pobrezas urbanas, como diz o livro?
Uma série de pobrezas urbanas se deslocam para lá. Uns migraram para a cidade em busca de emprego, não conseguiram e acabaram na rua. Outros eram meninos de rua. As pessoas que estão na rua não são loucas. Estão lá como resultado de uma série de falhas: assistenciais, de políticas de emprego, habitacionais, de saúde. É comum dizer que o uso do crack mostra uma falha moral. Mas o crack expõe uma falha social de todas essas políticas e também da legislação sobre drogas. No livro, quis fugir do discurso estereotipado de que as pessoas que estão lá têm famílias desestruturadas. A questão das drogas é também social.
Qual é a melhor política pública para enfrentar o crack?
As políticas de redução de danos. São um tratamento respeitoso, baseado no cuidado, com profissionais de assistência, de saúde, evitando a repressão e criminalização e sem violar direitos. A abstinência pode ser uma possibilidade para algumas pessoas, mas não para todas. Há as que conseguem dar conta do uso, desenvolvem outras atividades e ficam bem.
Mas essas pessoas estão na cracolândia?
Depende. Tem pessoas do programa Braços Abertos [da Prefeitura de São Paulo] que estão muito bem. Acompanho uma usuária há um ano e ela está dando conta da sua própria vida, trabalha, tem um lugar para dormir, condições de higiene e não consome como consumia antes. Está sendo observada por uma rede de profissionais.
Qual é a população da cracolândia?
A população é flutuante. Hoje estimo que sejam umas 300 pessoas. Diminuiu bastante desde a época que fiz a pesquisa [junho de 2010 a junho 2011]. Como continuo indo lá, noto que os usuários estão mais concentrados.
A redução da cracolândia é fruto das políticas públicas?
Sim. Por um lado, por causa das ações sociais que se ampliaram, especialmente com a criação do Braços Abertos, que atinge em torno de 450 pessoas. Há também o Recomeço, do governo estadual; e tem ônibus do governo federal, do programa Crack é Possível Vencer.
Por outro lado, [a redução ocorreu] porque a repressão ficou mais forte. Não uma repressão direta, mas a presença de mais carros da Guarda Civil e da PM. Hoje, a cracolândia deve ser um terço do que antes, entre 2010 e 2011. A repercussão negativa da intervenção violenta do governo do Estado em janeiro de 2012 mudou radicalmente o quadro. Virou um campo de intervenção de uma série de políticas, ações de defensores públicos, ativistas por direitos. Aquela tentativa de acabar com a cracolândia saiu pela culatra, e a resistência ganhou força.
A cracolândia vai acabar?
A cracolândia anda. É o que mostram esses 20 anos de história. Quanto maior a repressão, maior a resistência. Não se tira à força ninguém do espaço urbano. A cidade vai ter que conviver com ela, com seus usuários. Vai ter que entender que eles fazem parte da cidade e estão no único lugar que pode acolhê-los. É uma questão da metrópole, fruto de seus fluxos. Não acredito em solução mágica.