Francisco Daudt
Controle
A civilização consiste, metaforicamente, em, digamos, 'não obrar fora do lugar certo'
Freud detectou o início de uma guerra entre a criança e o mundo, entre o pequeno troglodita --que é como nascemos-- e a civilização, entre as forças da natureza que estão nos nossos programas cerebrais genéticos e a cultura que quer nos regular (ela também fruto da natureza, que nos deu capacidade de criá-la), no momento em que a criança já tem capacidade e maturidade neurológica para controlar seus esfíncteres de excreção e os adultos --representantes da civilização-- querem impor regras de higiene, horários e locais adequados para essas funções excretoras.
A civilização consiste, metaforicamente, naquele momento e mais tarde, em, digamos, "não obrar fora do lugar certo".
Freud usou o termo "fase anal" para descrever o teatro dessa guerra. Os pais impõem que a criança fique sentada por horas no penico, até atendê-los solidamente.
É pena não se valorizar a metáfora contida nesse drama: uma queda de braço pela qual todos passamos --e que nunca termina-- entre nossos interesses e o mal-estar que a civilização nos traz ao nos restringir a suas regras.
No entanto, esse mal-estar é variável. Se o embate foi tremendo e a imposição nos dobrou, carregaremos vestígios dele pela vida afora. Se a civilização nos foi apresentada como algo vantajoso, chegamos a gostar dela. Ora, usar um banheiro moderno é algo rápido, funcional e confortável, e as crianças podem descobri-lo assim. Mas, se forem obrigadas a usá-lo, vamos ter uma guerra que continua de maneiras inesperadas.
A primeira é a capitulação: a criança, em vez de entregar os pontos, toma a si um supercontrole, como a dizer para os adultos: "Não são vocês que me controlam, EU me controlo". E passa a ser excessivamente ordenada, perfeccionista e higiênica, passa a ser um militante da cultura, com julgamentos sumários de bom/ruim, de uma coisa ou outra, de preto ou branco. Torna-se incapaz de ver 50 tons de cinza. Um soldado da pureza (higiene) e do controle.
Torna-se obsessiva. De formas surpreendentes.
Homens querendo mandar na própria micção, mas, quando chegam num mictório público, com aquela fila impaciente atrás, entram em queda de braço com a imposição de serem rápidos, e a urina tranca (vão aos boxes, como saída).
Mulheres sofrendo de prisão de ventre, resultado de suas exigências de higiene e pudor. Contrariam os apelos do intestino fora de casa (nem em viagens). Ele para de pedir. Elas ficam enfezadas --significa cheia de fezes-- e tentam controlá-lo com laxantes.
Homens tendo a pretensão de mandar na própria ereção (semelhante ao impasse anterior de mandar na urina). Inútil. O pênis tem ideias próprias e não obedece a comandos. Você queria saber por que jovens andam usando Viagra? Eis aí: querem "desempenho" onde deveria haver diversão. Querem controle onde o gostoso vem do descontrole.
Agora, mulheres se sentem obrigadas a desempenho no sexo. Em vez de entrega, controle.
À preocupação com celulites e estrias (que os homens não veem), à comparação com as outras, somaram mais um empecilho para o orgasmo: a obrigação de tê-lo.