Tati bernardi
Uma hora
Eis o gozo supremo do neurótico: ele está tão bem com sua vida que ganhou esse furo na Matrix: uma hora
Dr. Gilson, novecentos reais (em algum lugar de minha autoimagem deturpada ficou instaurado que glamour é aval de Jesus. A pessoa sai da zona leste com a mania de achar que um médico caro é o passaporte para "pertencer". Mas pertencer ao quê, se nem vou com a cara dos ricos paulistanos?), acha que não tenho fobia de avião. Ou de viagem. Ou de sair da rotina. Ele acha que tenho problema "de pressão" e me manda fazer sempre tudo "uma hora antes" pra dar tempo "de descansar e recuperar a pressão".
O voo é às 13h. Tem que acordar às nove da manhã, porque há quatro dias já estou fazendo a conta: uma hora antes chegar no aeroporto. Uma hora antes de chegar no aeroporto, sair de casa. Uma hora antes de sair, começar a me arrumar e arrumar as coisas. Uma hora antes de tudo, uma hora. Porque, com sorte, antecipo uma hora o voo e, chegando uma hora antes no Rio, deito um pouco no hotel antes da reunião. E descanso uma hora. Ter UMA HORA é palpável. É como ter um amigo chamado Uma Hora que é gente finíssima, sereno e absolutamente dedicado até que, uma hora depois, ele pega sua maletinha de ar e vaza, me deixando acompanhada apenas do Vício, um cara magrelo com a pele toda cagada que me diz "se você correr muito pode TER UMA HORA de novo". Uma Hora é a puta que eu pago só pra ficar dizendo no meu ouvido "tudo bem, eu tô aqui". E "você ainda tem uma hora para eu ficar sussurrando que você ainda tem uma hora".
Eis o gozo supremo do neurótico: ele está indo tão bem com sua vida que lhe foi cedido por alguma divindade suprema esse furo absoluto na Matrix: uma hora. Ele está em controle tão pleno e absoluto de sua existência de cidadão bem enturmado com a sociedade que ele não só tem emprego, cônjuge, agenda, cachorro e linhaça. Ele tem tudo isso e ainda UMA HORA. De dentro do avião (que antecipei apenas meia hora, porque a outra meia hora eu perdi em dez vezes de três minutos em que fiz coisas "mais lento do que o esperado" ou apenas fiquei catatônica pensando em como ter tempo) faço uma lista mental de tudo o que eu posso fazer em meia hora antes da reunião: almoçar & escovar os dentes; banho rápido & cochilada; chegar antes pra puxar o saco do chefe & cocô; me matar & comprar chicletes (não nessa ordem); desistir da reunião & inventar uma desculpa; pensar em sexo & mandar uma mensagem "como vai" pra minha mãe (sempre quando em intenção de desfrute, seja solitário ou numa relação, seja de amor ou frugalidade, eu lembro que deveria "usar meu tempo com coisa melhor" como dar amor a quem me criou --mas sempre faço a opção pelo carnal, pois sou adulta e é isso que se aprende na terapia: ser adulto é transar ao invés de pensar na mãe).
Tirar o esmalte & curtir vídeo bebê com cachorro; morrer & desistir de morrer (só possível mentalmente, mas 98% da minha vida só é possível mentalmente, então não quis pular essa oportunidade). Ainda posso fazer um mix escolhendo uma opção de uma frente binária e outra opção de outra frente binária. Escolho banho e lanche rápido. Lanche rápido não tinha, né? Só tinha almoçar. Mas eu faço de propósito porque acho ridículo ter que fazer algo só porque eu o planejei há uma hora. Ou há duas horas. Ou uma hora e uns quebrados, apesar dos quebrados me angustiarem um pouco. Daí, porque interrompi o jorro da obsessão, sei que tenho uma hora até começar tudo de novo. Essa uma hora, diferente da "uma hora" que batalhei e me foi dada por mérito, eu roubei e me foi dada por mau comportamento. Gosto das duas igualmente. Assim como tudo que gosto, gosto também igualmente do seu oposto. Em suma, eu não deveria ter parado com o remédio. E superdeveria. Só tenho um segundo agora.