Batom na fatura
Brasileiros cadastrados no site de traição Ashley Madison temem ser descobertos após vazamento de dados; por descuido, usuário se 'entregou' em site
Do outro lado da linha, atende a mulher. "Ele não está. Serve meu filho?", pergunta à repórter.
"Ele" é seu marido, 76 anos, usuário do site canadense Ashley Madison, que promove encontros de pessoas para casos extraconjugais.
O filho –que já sabia das estripulias do pai– intercede e atende. "Ainda bem que você não mencionou isso com a minha mãe, né? Ia dar problema", diz o advogado de 30 anos, que mora com o casal.
Seu pai, também advogado, havia se cadastrado no Ashley Madison e percebeu cobranças indevidas em seu cartão de crédito. No dia anterior à ligação, deixou rastros ao postar uma mensagem em um site de queixas.
O advogado poderá ter outras preocupações além das cobranças. Em julho e agosto, 33 milhões de usuários do Ashley Madison tiveram seus dados expostos por hackers.
Mas ele passou incólume, por enquanto –a mulher, de 60 anos, não é muito ligada em tecnologia, conta o filho.
Após o vazamento, sites disponibilizaram os dados para que parceiros e parceiras averiguassem se tinham sido traídos. A busca pode ser feita por e-mail, apelido ou telefone.
"Tive a conta no período em que estava solteiro", garante um paranaense de 31 anos cuja foto no Facebook é com a namorada. Ela não sabe da conta –"ninguém sabe", diz o rapaz. Ele teme ter dados bancários divulgados e, "claro, outros transtornos".
As revelações derrubaram o presidente-executivo da empresa que controlava a Ashley Madison e provocaram até suicídio: investigadores do Canadá acreditam que duas mortes em agosto podem ter ligação com o caso.
Mesmo que São Paulo seja a cidade com o maior número de cadastrados no mundo (374 mil), há indícios de que o impacto do vazamento não foi tão grande cidade e no resto do Brasil.
Para Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e colunista da Folha, os sites que revelam infiéis e a própria notícia do caso não foram muito divulgados no Brasil.
Outra hipótese é de que há muitos usuários inativos no país –gente que percebe que é necessário pagar para enviar mensagens e desiste de frequentar a rede social.
Um paulistano solteiro de 25 anos diz ter se cadastrado em busca de sexo casual. "Logo que vi que era tudo pago, inclusive para mandar mensagens, já desanimei."
"A maioria dos brasileiros não paga", diz Lemos. "Tem muita gente que tem internet, mas não tem cartão de crédito internacional. E a renda aqui é muito menor."
EXCITAÇÃO E NOVIDADE
Apesar de ser um site para traição –com o slogan "A vida é curta. Curta um caso"–, é falsa a imagem de que todos os usuários eram casados, avalia a psicoterapeuta Maria Irene Zerbini,que estuda a infidelidade virtual.
E os comprometidos eram atraídos pela propaganda que "alimenta a fantasia de que é possível manter um relacionamento seguro e estável e ao mesmo tempo ter a excitação e a novidade de uma paixão".
O vazamento dos dados trouxe outras revelações. Homens cadastrados na rede social poderiam, muitas vezes, estar conversando com robôs –agentes virtuais que simulam ações humanas de forma padronizada–, e não com mulheres de verdade.
Segundo a jornalista americana Annalee Newitz, do site de tecnologia Gizmodo, pelo menos 70 mil robôs foram criadas para manter conversas com usuários do site.
Um paulistano de 53 anos diz que logo percebeu que as datas das mensagens enviadas por mulheres não batiam com os últimos acessos delas. "Só caía nessa arapuca quem estivesse muito a fim de acreditar", observa.
Em 2012, as robôs fizeram uma ex-funcionária do Ashley Madison processar a empresa. Doriana Silva, brasileira que vivia em Toronto, alegou ter sofrido lesão por esforço repetitivo (LER) ao ser obrigada a digitar mil perfis falsos em um mês. A empresa retrucou com outro processo, acusando Silva de roubar documentos confidenciais.
A Folha não localizou Silva. Seu advogado, Paul Dollak, recusou-se a dar informações sobre a cliente, mas enviou uma nota. "É difícil ser solidário ao site. Mas é possível lamentar por seus membros", diz. "Parece que Ashley Madison foi pega no ato."