Reação a arrastão é ascensão conservadora, diz sociólogo
Para Michel Misse, da UFRJ, polarização no país fez surgir um clima de ódio
Atuação da polícia é exagerada e cria mais revolta, diz Misse, que critica intervenção nos ônibus sem flagrante
Os desdobramentos de arrastões nas praias do Rio, com ataques de grupos contra ônibus de jovens da periferia, refletem a ascensão de uma extrema direita raivosa que saiu do armário.
A reflexão é do sociólogo Michel Misse, 64, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ. Para ele, existe uma reação ao longo período de hegemonia da esquerda na esfera federal. "Nunca vi tanto ódio", diz.
Autor de "Crime e Violência no Brasil Contemporâneo" (2006), Misse defende que a polícia faça trabalho preventivo, sem impedir o fluxo de jovens.
Folha- Qual sua visão sobre arrastões nas praias do Rio?
Michel Misse - Os eventos não são comuns, mas ganham dimensão muito grande, são supervalorizados, como se ocorressem em grande escala.
Há uma reação descabida, exagerada, das forças de segurança. Isso acaba produzindo sentimentos de humilhação e revolta em alguns desses jovens. Tende a gerar o que chamo de acumulação social da violência, da qual a mídia é um dos atores.
As verificações nos ônibus –onde todos descem e são revistados de forma dura– são desproporcionais em relação aos riscos que os jovens podem representar.
Depois houve o episódio de jovens de academias de musculação se colocando na condição de justiceiros: ameaçaram ônibus cheios de jovens da periferia.
A polícia está errada?
É um pouco a situação que vivemos antes com os chamados "rolezinhos". Esses jovens querem sair do anonimato em que se encontram, da invisibilidade social em que estão lançados.
A polícia deve acompanhar as redes sociais, colocar policiais nos locais onde pode acontecer balbúrdia, mas não impedir o fluxo de pessoas. Se for necessário intervir em algum ônibus, tem que ser pontual, baseado em um flagrante. Se não houve delito, como se vai prender as pessoas de um ônibus?
Como dimensionar esses fatos do ponto de vista social mais amplo?
A cidade está partida, mas não geograficamente. Está partida socialmente. Embora isso tenha diminuído bastante nos últimos dez anos, a cidade tem profunda cisão social. Há uma taxa de desemprego muito elevada na faixa etária entre 18 e 29 anos. Além de um número alto de jovens que não estudam nem trabalham. São jovens revoltados que agem dessa maneira.
As UPPs não ajudam?
Há uma reação da juventude das favelas ocupadas pelas UPPs. A polícia nas UPPs não faz apenas a proteção dos moradores. Ela tenta moralizar os costumes: proíbe bailes funk, faz revistas em jovens que considera suspeitos, cria um conjunto de constrangimentos.
O sr. trabalhou o conceito de "acumulação social da violência". Estamos vivendo mais um capítulo desse processo?
Sim. A violência é um mecanismo da vingança. Espalha-se um sentimento de impunidade, surgem grupos de extermínio baseados em contribuições de comerciantes.
A corrupção policial é uma alimentadora desse processo. Outra é a sujeição criminal –confundir o criminoso com o crime, achar que o sujeito carrega o crime para o resto da vida. Assim, dizem, não é o caso de prendê-lo, mas de eliminá-lo. Tudo isso contribui para essa acumulação social.
E as milícias?
As milícias são os sucedâneos dos grupos de extermínio, os esquadrões da morte.
Os recentes eventos de violência no Rio estão ligados ao ambiente de polarização política no país e à ascensão de ideias conservadoras?
Os problemas do Brasil são muitos grandes e muito pouco conhecidos dos brasileiros. Não ganham projeção os muitos esforços no sentido de superar esses problemas. A imagem negativa foi se acumulando.
A imprensa começou a fazer o papel de oposição política aos governos do PT; as pautas negativas ganharam mais relevância do que as positivas. As manifestações de 2013 foram resultado dessa visão. Os partidos de esquerda foram objeto de ira e reação violenta.
Uma certa direita conservadora, que não aparecia, começou a aparecer. Efeito normal de um período longo de hegemonia de uma política de esquerda no governo.
A direita saiu do armário. Isso é bom para a democracia, mas há uma extrema direita furiosa e raivosa. O ambiente está envenenado. Nunca vi tanto ódio.