Reunião para prestar contas ocorre em tom de intimidação
Dupla entra em terreno e recolhe dinheiro de sem-teto em ocupação com 9.000 pessoas na zona norte de SP
Movimento de moradia não quis comentar arrecadação e criticou falta de identificação de reportagem da Folha
Um clima de apreensão e silêncio toma conta da sala de cerca de 10 m² após um homem de jaqueta marrom e óculos escuros e outro rapaz, loiro, entrarem no local. A dupla se senta em meio a outras dez pessoas e começa a falar em tom de intimidação.
"Quero que você conte como esse dinheiro foi gasto", ordena o primeiro a uma das coordenadoras da ocupação Douglas Rodrigues, na Vila Maria (zona norte de SP).
O local abriga há dois anos cerca de 9.000 pessoas em barracos de madeira cortados por ruas de terra em uma área de 50 mil m² (o equivalente a cinco campos de futebol) do terreno que já foi ocupado por uma empresa.
O encontro ocorreu às 12h do dia 29, uma terça-feira. A reportagem acompanhou a reunião sem se identificar.
"Nós temos muitos gastos aqui e o irmão sabe", respondeu a coordenadora. "Usamos o dinheiro para comprar o que precisava, mas sempre tem protesto e temos de alugar ônibus e bancar tudo [para os moradores]. Fora os gastos com gasolina e outras coisas. Semana que vem, por exemplo, vamos precisar ir para Brasília. De onde vamos tirar dinheiro?", questionou.
O homem que mediava a conversa então olhou para uma moradora da ocupação do outro lado da salinha e pediu a ela seu depoimento.
"A gente pagou o que eles pediram, mas não sabemos o que aconteceu com o resto do dinheiro...", disse, quando foi interrompida pela representante do movimento social: "Agora fala para o irmão a quantas reuniões você foi."
O "irmão" de jaqueta e óculos escuros a interrompeu: "Cala a boca e espera sua vez". E completou: "Só quero que tudo seja mais transparente aqui. Quero todos os moradores na próxima reunião e um novo levantamento com o nome de cada um."
O homem fez uma pausa, olhou para outro que estava ao seu lado e ordenou: "Faz a conta: 20 famílias que deram R$ 200. Quanto dá?" "R$ 4.000", ouviu.
"E quanto foi gasto para comprar os fios?", voltou a perguntar ao mesmo rapaz. "R$ 1.800", respondeu ele.
O homem então questionou como tinha sido gasto o resto do dinheiro. Em seguida, perguntou à moradora se ela tinha visto alguma planilha com a descrição dos gastos. Ela negou.
Ele decidiu então que, a partir daquele dia, o movimento teria de apresentar a cada encontro com moradores uma planilha com a descrição de tudo o que havia sido arrecadado.
"Isso aqui não é bagunça. Se as pessoas estão aqui, é porque não têm lugar melhor para morar e quase não têm dinheiro. Se eles pagam alguma coisa, é porque precisam de melhorias. Olhem essas ruas de barro", disse.
Antes de deixar a sala, porém, fez questão de ressaltar que as famílias da ocupação terão de acompanhar as próximas reuniões para cobrar transparência do movimento social e ter acesso aos documentos que comprovam como o dinheiro foi gasto.
Após deixarem a salinha, integrantes do movimento social falaram entre si e disseram aos moradores que o assunto não era grave o suficiente para ter sido acionado o "irmão" para intervir.
Após a reunião, a reportagem presenciou o homem visitando comércios da ocupação. Ele recebeu dinheiro em alguns deles.
Procurado pela reportagem, o MIVM (Movimento Independente de Luta por Habitação da Vila Maria) não quis comentar o caso nem disse quem eram os dois homens que entraram na ocupação e participaram da reunião.
O movimento questionou se a reportagem estava exercendo papel de órgão de investigação policial por não ter se identificado durante a visita à ocupação. O terreno pertence a uma empresa de Pernambuco com dívidas com o governo federal. O movimento conseguiu, na Justiça, revogação de quatro reintegrações de posse.