A estética da cooperação
Entre a utópica aldeia global e o 'flá-flu' das redes sociais, ciclo de debates busca ideias que nos ajudem a viver juntos
A cooperação supõe uma estética. Kant já sabia disso quando insistia que deveríamos fazer um uso público da razão como "eruditos", com ideias "bem examinadas" e preferencialmente "por escrito".
São sugestões feitas nos termos do final do século 18, mas seu sentido é claro: o exercício intelectual supõe cuidado. Há nele um elemento precário. É um esforço cooperativo que pode perder-se, de uma hora para outra.
Eis um tema para a cultura contemporânea. Talvez nos tenhamos esquecido da ideia do cuidado. A internet se transforma, como bem definiu Cass Sustein, em um "imenso universo do nós-contra-eles". Arrisco-me a dizer que se trata de uma circunstância inesperada. No início dos 1990, quando o mundo digital ainda se desenhava, e, talvez na euforia pós-queda do Muro de Berlim, havia a esperança de que a internet pavimentasse a estrada para a "grande ágora global".
Ainda me lembro do projeto WAM, que conheci em um sótão de Barcelona, em 1997. Seu objetivo era produzir uma música global, feita da fusão de ritmos de todo o planeta, para ser ouvida nas primeiras horas do ano 2000. Ciberutopia feita por gente jovem, perfeita para aqueles tempos. Seria o primeiro ato da "sociedade civil mundial".
O projeto pode não ter vingado, mas está surgindo algo próximo a uma sociedade civil mundial. Com seus anjos e seus demônios. ONGs como a Oxfand multiplicaram sua capacidade de arrecadar e financiar projetos, e o vídeo Kony 2012 foi visto por mais de 100 milhões, ajudando a frear a ação do genocida Joseph Kony, em Uganda. Ao mesmo tempo, mais de 50 mil contas no Twitter apoiam o Estado Islâmico, e exemplos se multiplicam nesta direção.
O ponto crucial é: a internet torna crescentemente visível o que antes era invisível. E nos condena a viver juntos. Com nossos humores, idiossincrasias e impaciências.
Na vida cotidiana, antes de tudo. O sujeito acorda e dá de cara, na rede social, com o velho amigo da faculdade chamando de "ladrão" seu político favorito. O colega do escritório diz que todos os que foram à passeata eram "coxinhas". E você estava lá.
Pode ser pior. Alguém fará piada com suas crenças mais arraigadas no tocante a religião, orientação sexual ou valores éticos. Você terá que observar em silêncio. Exercer a complacência. Ou, quem sabe, apostar no conflito.
Uma alternativa é a exclusão da diferença. Richard Sennett, em "Juntos", cita um estudo de Robert Puttnam mostrando como a vivência com a diferença, em vez de nos aproximar do outro, nos incentiva ao retiro e produz um movimento contínuo de tribalização da vida social.
A ideia de tribalização foi pensada, originalmente, para a vida nas grandes cidades. Mas a lógica se repete no mundo digital. Redes sociais funcionam como máquinas simplificadoras, para retirar complexidade do pensamento. Retirar a nuance, o tom, fechar o espaço da dúvida. Reagir a isso supõe estar disposto a concessões. O uso do subjuntivo, por exemplo. Sennett observa que um "talvez" pode transformar uma conversa em exercício cooperativo. "A máquina social", diz, "funciona melhor quando as pessoas não se comportam com excesso de ênfase".
Vai aí um dos desafios da série Fronteiras do Pensamento deste ano: criar um espaço em que a dúvida, o prazer das ideias e o gosto pela cooperação intelectual vençam o jogo. E Sennett é um dos convidados. Quem sabe um bom exercício sobre "como viver juntos".