Mãe de vítima de Pinochet luta por justiça
'Esperei quase 30 anos, posso esperar mais', diz Verónica De Negri, que voltou ao Chile para julgamento de militares
Seu filho, Rodrigo Rojas, morreu em 1986 após ter sido queimado por oficiais durante protesto contra o regime militar
Na parede de seu quarto em Dupont Circle, em Washington, o estudante chileno Rodrigo Rojas, 19, tinha uma foto do bombardeio ao Palácio de La Moneda, em Santiago, que deu início à ditadura militar chilena (1973-90).
Apesar de já viver nos EUA havia mais de dez anos e de falar inglês fluentemente, Rojas, assim como os filhos de outros exilados políticos na década de 1980, não deixava de pensar e de falar do Chile de maneira obsessiva.
"Nós vivíamos de malas prontas. Queríamos embarcar de volta assim que possível. Eu sabia que as coisas ainda estavam difíceis e violentas e achava melhor esperar, mas o Rodrigo estava inconformado com o exílio", contou à Folha sua mãe, Verónica De Negri, que na semana passada desembarcou novamente em Santiago.
"Em 1986, ele decidiu que iria voltar e fotografar seu país. Eu tinha medo de que algo lhe acontecesse, mas jamais pensei em impedi-lo."
Para De Negri –que, após o golpe, ficou presa por dois anos e foi torturada e violada–, porém, o motivo do regresso agora ao Chile não é uma acolhedora volta ao lar.
Aos 70 anos, ela chega para acompanhar o julgamento dos ex-oficiais do Exército acusados de terem colocado fogo em Rojas e na estudante Carmen Gloria Quintana, então com 18 anos, durante uma manifestação contra o governo, em 2 de julho de 1986, no subúrbio de Nogales.
O jovem fotógrafo morreu quatro dias depois. Apesar de ter 60% do corpo queimado, Quintana sobreviveu e se exilou no Canadá, onde vive até hoje, e passou por mais de 40 cirurgias para se recuperar.
"Celebro o fato de a Justiça finalmente começar a ser feita, mas lamento ter levado 29 anos. Também aprecio que um dos ex-oficiais tenha resolvido falar, mas não posso perdoar os envolvidos na morte de meu filho", diz De Negri.
O "caso Quemados", como é conhecido no Chile, havia terminado impune na época.
Em 2013, porém, foi reaberto a pedido da família. No ano seguinte, o ex-recruta Fernando Guzmán decidiu romper um "pacto de silêncio" acordado entre os oficiais presentes à operação. Não apenas confirmou o relato da sobrevivente como ofereceu evidências dos esforços feitos para encobrir o crime.
Segundo Guzmán, os dois jovens haviam sido detidos e mobilizados junto à sarjeta. Os oficiais, então, teriam embebido seus corpos com gasolina e os incendiado.
Envoltos em cobertores, foram levados a um descampado próximo a Santiago, onde foram encontrados por moradores e levados a um hospital.
O relato do ex-oficial também confirmou o testemunho dado por um grupo de pessoas que estava numa parada de ônibus do outro lado da rua. Além disso, também desmontou a explicação oficial.
Na época, o general Augusto Pinochet (1943-2006) veio a público dizer que os adolescentes haviam se queimado sozinhos, porque carregavam coquetéis molotov e teriam tropeçado ao sair correndo.
Na última sexta (31), o National Security Archive, organização baseada em Washington, divulgou telegramas que mostram que a polícia de Santiago informara Pinochet sobre quem havia de fato colocado fogo nos dois jovens. Ele, porém, ignorou o relatório.
"Seu depoimento [do ex-recruta] permite determinar a intencionalidade dos fatos e descartar a hipótese de negligência. Agora, vamos realizar acareações e detalhar as acusações", disse o juiz Mario Carroza. Na semana passada, ele pediu a prisão de sete ex-oficiais.
"É só o começo. Todos vão ter de falar agora e vamos ver o que têm a dizer", diz De Negri, que não colocou prazo para sair do Chile. "Já não sei se posso voltar a viver aqui, mas vou esperar que a justiça seja feita no caso do meu filho. Esperei quase 30 anos, posso esperar um pouco mais."
FIM DA DITADURA
No ano passado, a presidente Michele Bachelet pediu a abolição da Lei de Anistia, vigente desde 1978. O assunto ainda depende de aprovação do Senado, mas, na prática, a Justiça já vem condenando, nos últimos anos, acusados de crimes de lesa-humanidade durante a ditadura.
Espera-se que o "caso Quemados" ajude a revelar também parte dos bastidores do fim do regime militar. Em meados dos anos 1980, o governo dos EUA já começava a pressionar Pinochet por uma transição diplomática no país.
A morte de Rojas, que era cidadão residente nos EUA, repercutiu mundialmente.
Um dos enviados a Santiago para acompanhar o caso foi o jornalista David Remnick, então em "The Washington Post" e hoje editor-chefe da "New Yorker".
"Visitei o Chile para escrever essa história há muitos anos. Me dói muito que a Justiça tenha demorado tanto, mas estou feliz de que tenha chegado", disse o jornalista à Folha. "Espero que traga conforto a De Negri e aos amigos de Rodrigo. Ele era um jovem valente e merecia ter vivido uma vida completa."