A história de Oliver
Em 2005, Alex Castro deixou seu cachorro em Nova Orleans pensando que o furacão Katrina passaria sem maior estrago; ao constatar o tamanho do desastre, resgatar o animal virou uma obsessão
Um dia, em 2003, encontrei um cachorro nas ruas de uma favela carioca, correndo por entre as rodas dos carros. Não consegui achar seus donos e fui ficando com ele. Oliver. No Ano-Novo, assustado com os fogos, fugiu de casa e se perdeu na mesma favela.
Comecei 2004 debaixo de chuva, distribuindo mais de 500 panfletos por ruas enlameadas. Um padeiro disse que Oliver tinha passado a tarde toda na sua padaria, fazendo cambalhotas em troca de comida: "Só botei pra fora quando tive que lavar o chão."
Depois de cinco dias, perdi as esperanças. Pelo menos, ele era um sedutor e sabia se virar. Então, reapareceu.
Pouco depois, minha esposa saiu de casa e recebi um convite para estudar em Nova Orleans, tudo na mesma semana. Fui. Disseram que eu era louco de levar meu cachorro, mas eu respondia: "Esse aí é um sobrevivente!".
Mal nos mudamos e veio a notícia: a cidade poderia ser atingida por um furacão.
Naquele sábado, 27 de agosto de 2005, as pessoas ainda estavam tranquilas.
Remoções eram parte da vida no Golfo do México: todo mundo ficava engarrafado, nada acontecia, os moradores ganhavam um feriadão.
Eu, recém-chegado, sem rede de amigos, sem estrutura de apoio, não sabia o que fazer. Minha universidade estava oferecendo ônibus para levar os alunos para abrigos no Mississippi, garantindo que voltaríamos em três dias.
Confiando na calma dos locais, acabei seguindo essa orientação e deixei Oliver preso no meu quarto, com bastante jornal, água, comida.
Mas, ao amanhecer domingo, o impacto já era certo: os jornais previam centenas de milhares de mortos, a destruição completa da cidade e o fim do meu cachorro.
A PIOR NOITE
Abandonei o abrigo e corri para o aeroporto mais próximo. Em meio ao caos reinante, fui de guichê em guichê perguntando: "Tem passagem no próximo voo para qualquer lugar?"
Em Detroit, na véspera do Katrina, passei a pior noite da minha vida. Todos os telões do aeroporto, todas as manchetes de jornais, previam o apocalipse e repetiam a mesma mensagem: "você abandonou o Oliver", "ele vai morrer", "a culpa é sua".
Quando deu uma da manhã, no meio de mais um Kaputt Nova Orleans!, o aeroporto de Detroit misericordiosamente desligou todas as telas e eu pude dormir.
Cheguei na casa de uma amiga, em Nova Iorque, e a tragédia estava sendo transmitida ao vivo, o fim de uma grande cidade, diversão para toda a família.
Não consegui assistir. Passei os próximos dias na internet, pedindo ajuda, elaborando, descartando, refazendo planos mirabolantes.
Um deles: voar para alguma cidade próxima, alugar um 4X4, entrar em Nova Orleans, salvar o Oliver, sair. (Mas os aeroportos estavam parados, os carros inundados, a cidade fechada.)
Outro, voar até Miami e convencer uma amiga, que então coordenava a sucursal de uma TV brasileira, a mandar uma equipe comigo resgatar o Oliver: "Juro que choro ao vivo na edição da tarde e da noite!" (Mas não havia verba.)
TELEFONEMA
Enquanto isso, uma amiga contou minha história para a filha colombiana de uma conhecida de sua sogra, que mencionou conhecer um fotógrafo sino-americano, que estava indo pra Nova Orleans tirar fotos da tragédia e talvez pudesse ajudar.
A conexão era tão tênue que não me permiti esperanças, mas, dia 5 de setembro, recebi o telefonema: Oliver já tinha sido resgatado pelo fotógrafo e por seu amigo indiano (que aparece na foto) e estava com eles em Washington DC, a capital do país.
Minha casa não sofrera nada. Oliver, malandro favelado, soube racionar seus mantimentos e, mesmo depois de dez dias, ainda tinha bastante água e comida.
Uma empresa aérea estava reunindo gratuitamente donos e animais separados pelo Katrina e, dois dias depois, transportaram o Oliver de Washington para Berkeley, na Califórnia, onde eu tinha sido aceito na universidade.
Reencontrá-lo foi um novo milagre. Nova Orleans permaneceu fechada por cinco semanas e quase todos os animais que tinham sido deixados em casa morreram de fome, de sede, de calor.
Oliver e eu não nos separamos mais. Depois de passar por San Francisco, Miami, Nova York, São Paulo, Paraty, assentamos de volta no Rio, onde ele fazia até stand-up paddle e foi estrela do episódio "Heróis" do programa Pet.doc, do GNT.
Morreu em dezembro de 2014, de velhice. Faz falta todo dia.