Beatriz Bracher
TENDÊNCIAS/DEBATES
A conveniência da palavra ódio
O ódio, alimentado pelas técnicas mais primárias e covardes de propaganda, foi a principal ferramenta usada nas campanhas à Presidência
Há um vencedor e alguns derrotados. Quanto a isso, não há o que discutir. Fim de jogo. E aqui estamos nós, uns e outros, meio mutilados, alguns ainda arfantes e, curiosamente, ninguém à espera do novo.
De um lado e de outro, é como se soubéssemos que sempre foi da mentira que se tratou, ninguém acreditava no que seu candidato prometia construir, mas teve certeza crescente de que o outro deveria ser destruído.
O ódio, alimentado pelas técnicas mais primárias e covardes de propaganda, foi a principal ferramenta dos que conduziram as campanhas à Presidência. Ele nos tornou poderosos e burros e não conseguimos ponderar sobre o rumo em que estávamos colocando o Brasil ao votar neste ou naquele.
A campanha não é um momento de exceção descolado do que somos. Se o ódio e a mentira germinaram de ambos os lados da disputa, isso não significa que está tudo bem depois do fim. Não se trata de saber se voltaremos a ser um povo unido, trata-se de saber que povo somos e que povo queremos ser.
O ódio é uma força potente na guerra e nefasta na paz, por isso tem sido a palavra escolhida para continuar a descrever o posicionamento atual dos vencidos. É uma maneira de retirar a legitimidade da crítica.
É importante dar a devida irrelevância aos que usam a internet para criticar nordestinos, aos que marcham defendendo o impeachment da presidente ou uma intervenção militar e aos que picham a sede de uma revista para que não sirvam de escudo à pertinência do debate.
Os cães ladram e a caravana segue pesada. Não é o tempo que poderá trazer de volta alguma luz às nossas relações políticas, mas a crítica e a reflexão.
Precisamos combinar novamente o que vale e o que não vale em uma campanha eleitoral, saber que o jogo é duro não quer dizer que vale tudo, o normal não pode ser a trapaça e o roubo. Eles vão existir, mas precisam ser nomeados como o que são e, se descobertos, alguns, punidos moralmente, e outros, legalmente.
Não pode ser considerado normal um vídeo com o prato de comida sumindo da frente de uma criança. Ou pode? É um excesso aceitável? Gostamos tão pouco dos políticos que, vindo deles, aceitamos esse tipo de crueldade? Não punir com nosso repúdio, que pode se manifestar na maneira como votamos e na fala, no grito e na escrita, é uma automutilação da nossa sensibilidade moral e social.
Foram enviadas mensagens e feitos telefonemas orientando pessoas cadastradas na lista do programa Minha Casa, Minha Vida a não votar no candidato da oposição, ameaçando-as de terem seus nomes retirados da lista de espera? Isso ocorreu? É legítimo? É punível pela lei atual? Por que não foi investigado?
Não se trata de alimentar rancores, mas do tipo de governança que irá imperar nos próximos quatro anos. E das regras implícitas e explícitas que estamos dispostos a ter e a tolerar nas próximas eleições.
Será, quem sabe, o começo de um entendimento de que o acordado não pode ser impunemente soterrado durante uma disputa eleitoral. Tenho a impressão de que é a civilidade da nossa democracia que está em jogo.