Sem censura
Decisão do STF reitera princípio da liberdade de expressão ao permitir biografias sem a necessidade de autorização prévia
Com bons motivos, classificou-se de "histórica" a sessão de quarta-feira (10) no Supremo Tribunal Federal. Estabeleceu-se que não é constitucional a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias no país.
Tomada por unanimidade, a decisão representa uma vitória da liberdade de expressão --e por isso mesmo talvez caiba acrescentar, ao aplauso que suscita, a nota mais humilde da consternação.
Pois não deixa de ser vexaminoso que, 26 anos depois de promulgada a Constituição, ainda se discuta juridicamente a validade de um de seus princípios básicos.
O bom senso e a obviedade nunca impediram ações judiciais sem cabimento. No caso das biografias, não foram poucas as personalidades (e seus familiares ou herdeiros) dispostas a invocar algum mecanismo legal para exercer censura.
Fundamentavam-se em dois dispositivos do Código Civil, cujo sentido é o de proteger a vida privada dos cidadãos e os direitos que detêm sobre a própria imagem.
O artigo 20 considera que "a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas" se atingirem sua honra ou respeitabilidade. A não ser que exista autorização da própria pessoa ou de seus descendentes.
Afirma-se, no artigo seguinte, que é inviolável a vida privada de uma pessoa, podendo o juiz adotar "as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".
Com base nisso, a boa imagem do cangaceiro Lampião, defendida por seus descendentes, determinou três anos de censura sobre a narração de sua movimentada vida. O motivo é que o texto especulava sobre a homossexualidade do bandoleiro sertanejo.
Liberdade de expressão ou direito à privacidade? Os ministros do STF procuraram equilibrar os dois princípios. Não é possível, numa democracia, censurar previamente uma obra de pensamento. Não se quis, entretanto, vedar automaticamente qualquer tentativa de acesso à Justiça baseada nos dois artigos do Código Civil.
Uma top model, lembrou o ministro Dias Toffoli, não pode liberar o uso comercial de sua imagem sem pagamento. Não apenas indenizações, mas outras formas de reparação podem ser solicitadas --e alguns ministros chegaram ao ponto de não descartar que se possa suspender a circulação de um livro.
Casos polêmicos, portanto, haverão de voltar à baila no futuro. O que não se admite --e nunca deveria ter sido admitido-- é a censura prévia, a obrigatoriedade da autorização. A rigor, o STF reafirma o que nem mesmo precisaria ser posto em debate; mas é assim, aos poucos, que o consenso se constrói.