Google Glass será uma ameaça à privacidade?
Se você ainda não ouviu falar do frenesi em torno do Google Glass --óculos que podem gravar vídeos, tirar fotos e transmitir ao mundo o que você está vendo--, eis uma ideia do interesse que ele desperta. Dias atrás, alguém que dizia estar testando o óculos para o Google tentou leiloar o seu aparelho de US$ 1.500 (cerca de R$ 3.000) no eBay.
Os lances haviam alcançado US$ 16 mil quando o eBay o interrompeu a venda, alegando que a pessoa não conseguia provar que possuía os óculos (que supostamente só chegariam neste mês).
O Google Glass é o mais aguardado lançamento da "computação vestível", que os especialistas preveem que se tornará onipresente. Nos últimos 50 anos, passamos de computadores "mainframe", que precisavam de salas próprias, para os de bolso; qualquer smartphone hoje em dia tem o mesmo poder computacional que laptop de primeira linha uma década atrás.
O próximo estágio serão computadores que se encaixem no seu corpo, e a ideia do Google é que você só precise falar para operá-lo. Os vídeos que a empresa colocou on-line --e as demonstrações de Sergey Brin, cofundador do Google e impulsionador desses saltos imaginativos-- sugerem que você pode girar de mãos dadas com a sua filha, dizer: "Ok, Glass, faça um vídeo!", e registrar o momento (para ativar o Glass, você precisa inclinar a cabeça, ou tocar a lateral, e aí dizer "Ok, Glass, grave um vídeo", ou "Ok, Glass, tire uma foto").
A única forma de conseguir esse ponto de vista é afivelando uma câmera à sua cabeça. Brin apareceu sobre o palco em uma conferência TED usando seus óculos Glass (será que o plural vai ser Glasses?), e parecendo vagamente um pirata espacial. Ele descreveu os smartphones comuns como "emasculadores" (o que motivou muita perplexidade e consultas ao dicionário: é, ainda significa o que você pensou).
E as pessoas já começam a se questionar sobre as implicações sociais dos Glass (como estão rapidamente sendo chamados). A primeira, e mais óbvia, é a questão da privacidade. A segunda é: como vamos nos comportar em grupos quando a distração da internet estiver a apenas um movimento de olhos?
David Yee, o diretor de tecnologia de uma empresa chamada Editorially, tuitou outro dia sobre esse ponto: "Há um rapaz usando Google Glasses neste restaurante, que até pouco tempo atrás costumava ser o meu favorito".
A preocupação de Yee era que o jovem pudesse estar filmando tudo e enviando para os servidores do Google (e para uma página do Google+). O que parece mesmo assustador. Não é uma preocupação trivial. Joshua Topolsky, jornalista americano de tecnologia que é um dos poucos a terem experimentado o Google Glass --a convite do Google--, descobriu isso diretamente. Foi usando um deles a um Starbucks, acompanhado por uma equipe de filmagem. A equipe recebeu ordem para parar de filmar. "Mas mantive a câmera de vídeo do Glass funcionando o tempo todo."
Mas você pode pensar: que mal há nisso? O problema é: esse é o Google, não a Incrível Fábrica de Óculos do Fred. Essa é a empresa que tem repetidamente violado os limites do que consideramos "privado". Do Google Buzz (em que criou uma "rede social" a partir de listas de e-mail das pessoas, esquecendo que às vezes inimigos mortais têm amigos em comum; suspenso por 20 anos pela Comissão Federal de Comércio dos EUA) e das polêmicas sobre as fotos no Street View até o surrupio intencional de dados de wi-fi na hora de colher essas fotos (multa de US$ 25 mil da Comissão Federal de Comunicações dos EUA por obstruir sua investigação sobre isso).
E isso antes de chegarmos às críticas na Europa por sua atitude quanto à proteção de dados (comissários da informação resmungaram em outubro que a unificação de diferentes políticas de privacidade do Google implicava um uso "descontrolado" de dados pessoais sem o consentimento claro do indivíduo).
Para o Google, "privacidade" significa "aquilo com que você concordou", e isso é ligeiramente diferente da privacidade à qual estamos acostumados. Então até que ponto devemos nos sentir confortáveis --ou desconfortáveis-- com a possibilidade de que tudo o que fizermos num lugar público ou semipúblico (ou mesmo um lugar privado) poderá ser sorvido e assimilado pelo Google. Você pode imaginar o que acontecerá na primeira vez que colocar um Glass: haverá um longuíssimo texto jurídico padronizado para ser rolado, com "Concordo" no final.
E, impaciente e negligente como sempre, você vai clicar lá, sem pensar muito em onde está se metendo (e metendo os outros). Será que uma criança pode consentir adequadamente em filmar ou ser filmada? Um adulto que por acaso esteja visível na visão periférica da câmera em um bar está consentindo? E a quem pertencem --e o que acontece com-- esses dados?
Oliver Stokes, diretor de inovação de design da PDD, que ajuda clientes como LG, Vodafone e Fujitsu a criarem produtos, diz que o cenário de Yee no restaurante é "preocupante". "A ideia de que você pode inadvertidamente se tornar parte do acervo de dados de alguém --isso pode ser bastante alarmante E o Google se tornou a empresa que sabe onde você está e o que você está procurando Agora ele poderá computar o que você está olhando."
Isso, observa ele, pode ser extremamente útil. "Supermercados e fábricas de embalagens gastam muito dinheiro tentando descobrir para quais pacotes você olha primeiro numa prateleira. Potencialmente, pelo Google Glass, eles estariam capturando os dados como padrão. Isso seria bastante poderoso --poder dizer por que as pessoas compram as coisas."
É claro que os benefícios não reverteriam para o usuário. O Google venderia os dados (devidamente anônimos, é claro). E o seu smartphone já fornece uma enorme quantidade de detalhes a seu respeito. Song Chaoming, pesquisador da Universidade Northeastern, em Boston, tem analisado registros de telefonia celular (inclusive com quais estações-base o telefone se conecta) e desenvolveu um algoritmo que pode prever --com, diz ele, 93% de precisão-- onde está o proprietário a qualquer momento do dia (triangulando a partir da força do sinal de cada estação-base; em parte é assim que seu smartphone consegue mostrar onde você está em um mapa). Ele analisou os registros de 50 mil pessoas; a precisão nunca foi inferior a 80%.
Quando se considera que Chaoming faz isso apenas nas suas horas vagas, e que o Google tem equipes cuja única tarefa é desenvolver algoritmos melhores para entender onde está um dono de telefone, e o que ele está fazendo com base em suas atividades e buscas passadas, você percebe que, se estiver usando um celular Android, o Google provavelmente sabe o que você vai fazer antes que você mesmo saiba.
A objeção óbvia a essas preocupações é que estamos habituados a sermos filmados; as câmeras de vigilância são parte da vida. A resposta de Yee: "Não 5.000 câmeras por cidade --5 milhões. Não 5.000 monitores --um". Os 5 milhões são os usuários do Glass; o monitor único é o Google, agregando, filtrando, lucrando.
Mas já vivemos num mundo onde as fronteiras entre o privado e o público estão se dissolvendo. Outro dia, minha timeline no Twitter ganhou vida com alguém tuitando sobre estar vendo um casal tendo uma furiosa discussão num bar; o homem havia tido vários relacionamentos paralelos; a mulher havia tido uma síncope. Sua infelicidade estava sendo exibida em público, embora o bar não fosse a rigor um espaço público. Se algum deles usasse o Twitter, poderia ter se achado (ou amigos poderiam tê-los reconhecido). E o conteúdo do Twitter é preservado e passível de buscas através de inúmeros serviços da internet.
Redes sociais como o Twitter e a onipresença desde 2003 dos celulares com câmeras (e agora dos smartphones, que não só continuam tendo câmeras de vídeo e foto como também podem carregar seu conteúdo na internet imediatamente) implicam que nos tornamos mais acostumados a flagrantes em foto e vídeo que contam uma história. Sem eles, não saberíamos as reais circunstâncias que cercaram a morte do jornaleiro Ian Tomlinson durante um protesto contra o G20.
E se todo mundo que estava lá usasse o Google Glass (ou similar) e transmitisse as imagens para a web? Será que a polícia teria agido de outra forma?
O Google não quer discutir essas questões. "Não vamos comentar", diz um porta-voz da empresa. Mas outras fontes sugerem que os diretores do Google sabem que essa é uma questão palpitante, e estão observando seu desenrolar. Isso é parte do plano por trás do esquema dos "exploradores do Glass", que visa a colocar os equipamentos nas mãos --ou melhor, nos rostos-- de pessoas comuns (foi o que permitiu que um participante da experiência tentasse leiloar o Glass).
"Pode ser que novas normas sociais se desenvolvam com o Glass, nas quais as pessoas criem uma maneira informal de mostrarem que não o estão usando --digamos, colocando-o em volta do pescoço, para sinalizar que não estão usando nem se distraindo com ele", disse uma pessoa que conversou sobre isso com o pessoal do Google, mas precisa permanecer anônima. "Uma das razões para terem os exploradores é receberem um retorno a respeito dessas coisas, e também sobre os equipamentos."
A outra grande questão sobre Glass é: como vamos nos comportar uns com os outros? Minha experiência própria com um sistema semelhante ao Glass, ao usar óculos especiais para esqui, sugere que a distração irá acontecer com muita facilidade. Esse sistema, da Recon, tem uma lente no canto superior direito que mostra dados como sua velocidade, altitude e até mapas de estações de esqui (úteis quando a neve deixa tudo branco ao redor). Era facílimo, ao parar para conversar com alguém, olhar para cima e ler algo na tela. Estar presente e não-presente se tornou quase um reflexo, e isso com apenas uma semana de uso. Mas, ao mesmo tempo, o visor não era tão dominante. Concentrar-me no que estava à minha frente não era tão difícil, quando necessário.
Carolina Milanesi, analista de smartphones e tablets na empresa de pesquisas Gartner, diz: "Curiosamente, isso [a distração] foi a primeira coisa na qual pensei - não que o Glass estivesse lhe dando algo que os celulares não podem lhe dar, em termos de partilhar e acessar conteúdo, mas que ele faz isso sem deixar que os outros percebam que você está fazendo alguma coisa. Em outras palavras, com o celular, se estou tirando uma foto, a pessoa em quem estou focando irá provavelmente me notar; com o Glass, não".
MENOS DISTRAÍDO
Apesar da sua linha de trabalho, Milanesi teme que fiquemos envolvidos demais com a nossa tecnologia, excluindo as pessoas reais ao nosso redor. A preocupação dela com os restaurantes é diferente da de Yee. Em junho de 2011, ela chamou a atenção para a forma como os smartphones nos alteram: "Veja ao seu redor, num restaurante ou bar, quantas pessoas, inclusive casais, estão sentadas frente a frente e estão ambas olhando para os seus celulares".
O Glass pode mudar isso para melhor --mas será que vocês pareceriam olhar um ao outro, embora prestando atenção no seu e-mail ou num vídeo? Topolsky, que usou o Glass durante alguns dias, disse: "Ele colocou à vista (literal e figurativamente) algo novo, com um tremendo valor e potencial... Quanto mais eu usava o Glass, mais fazia sentido para mim; mais eu o queria".
Ele adorou a forma como mensagens de texto e telefonemas apareciam apenas como alertas, e ele podia lidar com isso sem tirar o telefone do bolso para ver quem estava ligando. Saiu andando e precisou de orientações? Elas estavam à vista. "Na cidade, o Glass faz você se sentir mais poderoso, mais bem equipado, e definitivamente menos distraído", disse ele. Mas acrescentou: "Pode não ser tão ótimo num jantar festivo, ou num encontro romântico, ou assistindo a um filme".
Mark Hurst, fundador da empresa nova-iorquina Creative Good, especializada em melhorar as experiências do consumidor, comentou que "suas conversas cara a cara com alguém que use o Google Glass provavelmente serão chatas, porque você vai suspeitar que não tem a atenção integral da pessoa. E você não poderá pedir confortavelmente para que ela tire os óculos (especialmente quando, como inevitavelmente será, o dispositivo estiver integrado a lentes com grau). Finalmente --e eis onde os problemas realmente começam--, você não sabe se a pessoa está fazendo um vídeo seu".
Stokes observa que já estamos vendo uma mudança na linguagem corporal com a popularização dos smartphones e suas telas reluzentes: o andar corcunda que há dez anos caracterizava um gênio das finanças com seu BlackBerry agora é visto em qualquer calçada.
"Acho que haverá uma reação", diz Stokes. "Talvez a gente precise ter uma cobertura de lente para mostrar que você não está filmando." Ele observa, porém, que o atual modelo parece exigir um controle por voz --"Ok, Glass, grave um vídeo"-- e isso pode desestimular alguns usuários em público. "Tenho observado as pessoas usando o Siri [controle por voz do iPhone, da Apple]. Simplesmente não vejo as pessoas usando-o em lugares públicos. Talvez seja empetecado demais."
"As pessoas vão precisar descobrir qual é o novo normal", diz Stokes. "Eu realmente me pergunto se falar e gesticular poderiam ser essencialmente proibidos em público."
"Em casa, meu marido já brinca que eu mostro no [serviço de localização] Foursquare em qual pedaço de tapete estou parada", diz Milanesi. "Quanto mais disso teremos agora que ficou tão simples para nós? E o outro lado da moeda: quanto vamos partilhar com os outros, e a que altura teremos uma reação? Quando tudo isso será demais?"
Tradução RODRIGO LEITE.
Livraria da Folha
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