Laranjas de fim de noite
Isso são coisas de muito antes, antes de descobrir que o que eu gostava mesmo era de arte, e não de morte. Sempre gostei de velhos, pessoas, livros, sebos etc. Um dia meu pai me fez a gentileza de explicar que não daria para eu viver da minha perplexidade, que se eu só sonhasse e não acordasse e escrevesse, não adiantaria nada. Mas a verdade é que a vida absolutamente não me interessava.
Reprodução |
Partitura de canção de Willy Corrêa de Oliveira, inspirada em poema de Alexandre Barbosa de Souza |
Escrevi praticamente um poema por dia durante alguns anos antes dos 17. Entreguei todos ao Willy Corrêa de Oliveira, que comentava alguns e anotava e me mostrava outros tantos. Do entusiasmo desse grande músico e mestre das artes por esses poucos primeiros poemas, tirei coragem para escrever mais alguns, que pudessem arrebatar meu amigo e principal leitor desde que comecei a fazer poemas. (Se eu fosse um Pasternak tupiniquim, o Willy seria meu Scriabin do Recife.)
Um dia escrevi: "Falta um dia/ para o fim do mês.// E me lembro de dizer/ a meu pai: sinto uma tristeza/ infinita". Por esse poema, o Willy me deu de presente a edição fac-similar de "The Waste Land", do T.S. Eliot, com os cortes do Pound.
Outro dia estávamos descascando uma laranja de fim de noite e o Willy contou a história de "A Pantera" do Rilke --Rodin pediu a Rilke que fizesse um poema da pantera do Jardin des Plantes de Paris. Por que eu não fazia um poema assim, de uma coisa, e não só da minha cabeça? (Porque tem poema que vem mesmo soprado no ouvido pelo próprio anjo.)
Aí escrevi o poema do pássaro chinês que Willy e sua mulher, Marta, têm na sala: "O pássaro chinês/ Deixou as mãos/ Do artista: encantado,/ Voou por oceanos/ Esquecidos dos grous,/ E, mais saudoso que cansado,// O aventureiro,/ Pousou com espanto,/ Entre o santo e o tinteiro;// Onde agora vigia,/ Seu sábio coração/ De madeira da China.".
Quando voltei de Cuba em 1999, o Willy me pediu que contasse sobre a viagem, o que eu havia escrito. Levei ao Pedro Juan Gutiérrez alguns presentes do Willy, que o conhecera nos anos 1970 em São Paulo, quando Gutiérrez ainda era um poeta pequeno-burguês, segundo os amigos que o haviam recebido por aqui --entre eles, o Willy e o poeta Florivaldo Menezes. Esse pedido motivou uma versão das minhas anotações de diário, que resultariam no livro "Viagem a Cuba", que termina assim: "Há uma pureza que se perde/ Na transcrição das frases.// Uma pureza que está na memória/ Livre dos gestos livres;// Mas não ali quando os repetimos./ Algo entendido para sempre.// Que procuro manter em silêncio/ E retirar só em caso de urgência.".
Em 2003, passei alguns meses em Amsterdã, gastando o dinheiro de quase dez anos de fundo de garantia, amealhados trabalhando na editora 34, e publiquei uma plaquete, "XXX", o meu primeiro livro sem a participação do Willy.
Dez anos depois disso, reuni o conjunto que chamei de 11+1 poemas e levei para o Willy. Alguns dias depois, ele telefonou dizendo que ele tinha feito uma música, que talvez fosse a música mais bonita que já tinha feito, para soprano e piano, a partir de um poema que escrevi sobre uma luminária que comprei num antiquário em Santa Cecília, e que hoje ilumina o quarto do meu filho: "Minha lâmpada maruja,/ Mourisca, de escamas de luz,/ Meu quarto vazio marulha.// Faz pousar no parapeito/ A gaivota obscura;// Minha lâmpada maruja,/ Mourisca, de escamas de luz.// Atrai para o tapete/ A sereia branca.".
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